Sobre "A Construção da Villa Além", de Ana Resende, Miguel C. Tavares, Rui M. Vieira, Tiago Costa
O filme nasce com o dia, nasce como a obra. Depois, mas ainda no plano inicial, o dia avança, como irá avançar ao longo do filme, sequência após sequência, jornada após jornada. Entram então os títulos, como a noite. "A Construção da Villa Além": uma casa de Valerio Olgiati num qualquer Algures, Alentejo. Já lá voltaremos.
Premissa essencial e talvez por isso redundante: o cinema acontece no tempo e existe no espaço. No espaço que se filma, na imagem que se projecta numa superfície. Mas também no espaço mental que se faz filme. Existe no tempo que dura e no tempo que representa: neste caso, a ideia de dia, vários dias como um só, o tempo da obra numa sucessão de planos que simbolizam o seu ciclo de feitura natural e obrigatório.
Falar de "A Construção da Villa Além", numa das suas possíveis aproximações, é falar das mais elementares (e por isso mesmo mais radicais) estruturas do cinema, do cinema enquanto filosofia, do cinema enquanto símbolo: tempo, espaço, imaginário. Logo na sequência inicial, a herança do suspense: a premissa do mistério está lá na sua integralidade formal, do plano de arranque até aos títulos de abertura: os dados lançados dão-nos o dia como ciclo, a localização como enigma, e, já noutro plano, a obra arquitectónica como símbolo – ela nasce como o sol, cresce como a vegetação que substitui (e que depois nela ressurge, domesticada), mas também como emanação de um poder: de uma natureza vai nascer uma outra. A casa é além e além é em nenhum lado. Afinal, onde mais poderia ficar uma casa fechada do mundo e aberta ao céu? Desconhecer onde é o além (haverá quem saiba onde fica?) é aqui uma vantagem: pela força do mistério, esquecemo-nos do espaço que envolve para nos concentrarmos no espaço que surge.
Depois, a linguagem – cinematográfica, neste caso. A montagem, como organização de imagens no tempo, cria um significado, uma história que acontece cronologicamente, com princípio e fim, como numa estrutura clássica. E este significado existe para além da palavra, existe como um espaço onde se opera um elogio da lentidão: os planos duram como a obra e é por isso, por força desta permanência (que nada tem de casual), que imaginamos. Imaginamos o passo seguinte, a obra feita e habitada, mas também o tempo de filmagem, os dias, as horas; o tempo de montagem, as noites e as horas da noite (cinematograficamente, a montagem tende a ser nocturna por excelência). E por fim a parafernália filmográfica como material de construção, da construção da Villa Além como cinema. Fará então sentido sublinhar a evidência: estamos perante um filme como obra e perante uma obra como filme. Voltam então as estruturas elementares e as possibilidades infinitas acima convocadas: tempo, espaço, imaginário. E neste último, somos de novo espectadores de uma obra que avança pelo dia e acaba com a noite. E como se sabe, à noite há espectros, coisas que parecem outras coisas, reflexos, cozinhas como cenários prontos a usar, janelas como telas de cinema, janelas como palcos onde sombras de cavalos se projectam. As cortinas correm, o filme acaba. Depois virá o dia, e "A Construção da Villa Além" recomeçará outra vez: o cinema como obra.
Eduardo Brito
Curador