O Fórum do Real no Porto/Post/Doc 2016 é dedicado ao tema "Cinema Sensorial". Os painéis que constituem o Fórum podem ser consultados nesta página.
Nos últimos dois anos, o Fórum do Real discutiu dois temas dominantes do cinema contemporâneo: por um lado, o Real – enquanto conceito estruturador do próprio festival –, e, por outro, o imaginário. Podemos dizer que ambos os conceitos são faces de uma mesma moeda: a da representação do mundo, algo que Stuart Hall nos mostrou ser, necessariamente, ambivalente e em constante deslocamento. Este ano, procuramos uma nova discussão, que é quase uma variante das anteriores: como é que conseguimos aproximar-nos do real (entendendo o real como um conceito sempre em mudança)? A antropologia visual é uma disciplina que muito se preocupa com essa ideia do real. Por isso mesmo, nos últimos anos tornou-se emergente a ideia de uma etnografia sensorial. Foi essa emergência que suscitou o nosso interesse no trabalho do Sensory Ethnography Lab, da Universidade de Harvard, e que terá, este ano, um foco no Porto/Post/Doc.
Segundo Sarah Pink, antropóloga social, a etnografia sensorial não pretende “produzir uma visão da realidade objetiva ou verdadeira, mas antes pretende oferecer versões das experiências da realidade dos etnógrafos, que sejam o mais possível leais ao contexto, às experiências corporais, sensoriais e afetivas, e às negociações e intersubjetividades pelas quais o conhecimento é produzido”. Este “sensory turn” na antropologia significa uma fragmentação da investigação, procurando absorver informação a partir de uma plêiade de formas – sensoriais – e dando-lhes a todas o mesmo valor qualitativo. No campo da antropologia, o “sensory turn” foi palco também para a valorização do registo audiovisual como método de recolha e divulgação da informação.
O trabalho do Sensory Ethnography Lab vem na sequência destas transformações, dando corpo à necessidade de fazer uma etnografia que concilie a observação da comunidade com uma estética sensorial. Para isso, foi também importante valorizar certos métodos de filmagem – como o som e a sua dessincronização com a découpage – assim como a utilização de novos meios tecnológicos, como câmaras digitais portáteis, ou mesmo microcâmaras, capazes de alterar o ponto de vista e até evitar a manipulação do etnógrafo. Os filmes do SEL são produções que procuram o outro, através da etnografia clássica – o tempo como marcador da observação – mas também através desta estética sensorial. São disso exemplo bastante filmes como Sweetgrass (Ilisa Barbash, Lucien Castaing-Taylor, 2009) ou o multipremiado Leviathan (Véréna Paravel, Lucien Castaing-Taylor, 2012).
Para além disso, a ideia de um cinema sensorial não pode ser afastada de outras correntes associadas aos estudos fílmicos e que têm procurado dar conta das questões da perceção no cinema – um debate quase centenário como a própria arte de fazer cinema. Para Thomas Elsaesser, o cinema contemporâneo – e, em especial, o world cinema – tem oferecido histórias sob a perspetiva de um novo realismo. Não se trata aqui de rever as posições tomadas por André Bazin na defesa do neorrealismo italiano, mas sim dar conta de uma nova posição estética, que já não privilegia a visão como o sentido mais operativo para o conhecimento (aliás, tal como advoga a etnografia sensorial). O cinema do novo realismo é, arriscamos, o cinema sensorial, aquele que procura, nas palavras de Elsaesser, “reinvestir no ‘corpo’, nos ‘sentidos’, na pele, na tactilidade, no toque, e no tato [the haptic], o que corresponde na filosofia e na neurociência à ideia da ‘mente corporizada’.” Entre outros, o académico cita os cineastas Apichatpong Weerasethakul, Tsai Ming-liang, Hou Hsiao-hsien, Michael Haneke ou Kim Ki-duk.
Esta edição do Fórum centra-se, portanto, na ideia de um novo cinema sensorial, que promove os sentidos humanos na sua capacidade de observar o mundo de uma forma multidimensional. Procuraremos debater as marcas deste cinema, assim como assuntos relacionados com a experiência sensorial e que têm dominado várias áreas do saber. Finalmente, ouviremos os realizadores que, na sua prática de filmagem, utilizam e promovem a existência de um cinema sensorial.