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Em Busca da Experiência Sensorial: o Sensory Ethnography Lab / Foco SEL

por Daniel Ribas / 12 11 2016


O seguinte texto pretende dar uma panorâmica do Sensory Ethnography Lab, cuja obra é motivo de uma retrospetiva no Porto/Post/Doc 2016. Para ver os filmes a exibir consulte esta página.

Nas últimas décadas, o campo da etnografia tem sofrido alterações profundas. Conscientes da dificuldade em olhar o outro e em escrever sobre essas experiências, os antropólogos e os etnógrafos procuraram novas formas de disseminar o conhecimento. Dentro dessas formas, pontuava o registo audiovisual. O Sensory Ethnography Lab surge neste contexto, “promovendo combinações inovadoras de estética e etnografia”. Neste sentido, o laboratório “utiliza meios analógicos e digitais para explorar a estética e a ontologia do mundo natural e não natural. Aproveitando as perspetivas das artes, das ciências sociais e naturais e das humanidades, o SEL estimula a atenção às muitas dimensões do mundo, tanto animadas como inanimadas. A maioria dos trabalhos produzidos no SEL toma como assunto a práxis corporal e o tecido afetivo da existência humana e animal”.

O SEL é um laboratório académico, da Universidade de Harvard, dirigido por Lucien Castaing-Taylor. Acolhendo no seu interior realizadores e etnógrafos, a sua intenção é promover a produção de documentários como forma de etnografia sensorial. Assim, na última década, o SEL produziu diversos filmes que têm alterado o panorama do cinema etnográfico, explorando novas formas tecnológicas para combinar o trabalho de campo com a experiência sensorial do cinema. O resultado mais evidente deste laboratório tem sido os filmes documentais, que procuram, de facto, dar conta de realidades palpáveis, em que a câmara de filmar e os gravadores de som tentam captar, com intensidade, uma determinada comunidade. Há, por isso, uma vertente tecnológica nos filmes produzidos pelo SEL: as câmaras digitais, mais pequenas e portáteis, os sistemas de captação de áudio, mais eficazes e “invisíveis”, permitem um acompanhamento minucioso de práticas rituais ou de certos locais e das suas comunidades.

Por outro lado, os filmes SEL mantêm uma recorrência do cinema etnográfico: a experiência do tempo. Isto é, eles procuram, através da paciência do etnógrafo, olhar e sentir, no decorrer de uma longa estadia, os subtis comportamentos humanos. É pela insistência em observar que o etnógrafo “integra” a comunidade e que, dessa forma, consegue surpreendê-la nas suas ações mais mundanas. Muitos dos filmes SEL dependem dessa experiência do tempo: os vários verões passados com as ovelhas em Sweetgrass (Ilisa Barbash, Lucien Castaing-Taylor, 2009); o período passado no quarteirão de oficinas automóveis em Willets Point, Nova Iorque, para Foreign Parts (Véréna Paravel, J.P. Sniadecki, 2010); ou a própria dinâmica do tempo fílmico nas captações em tempo real de Manakamana (Stephanie Spray, Pacho Velez, 2013) ou People's Park (J.P. Sniadecki, Libbie Dina Cohn, 2012).

No entanto, o gesto etnográfico e estético do SEL está presente em várias das suas dimensões temáticas. Por um lado, o equilíbrio discursivo entre os humanos, os animais e mesmo os elementos não vivos. Nestes filmes, há uma nova lógica de interesse, que passa por uma multisensorialidade: tudo tem o mesmo valor no plano da imagem e do som. Duas características técnicas concorrem para este resultado: por um lado, o som deixa de ter um valor indexical: o plano geral pode juntar-se com um close-up sonoro; por outro, os realizadores SEL têm feito um uso criativo das “câmaras de ação” (como são exemplo as câmaras GoPro), permitindo chegar a pontos de vista e dinâmicas de ação diferenciadas da filmagem clássica. Os exemplos paradigmáticos disto mesmo são os pontos de vista das ovelhas em Sweetgrass, onde a sua animalidade ganha uma nova subjetividade, e também nos peixes de Leviathan (Véréna Paravel, Lucien Castaing-Taylor, 2012) na sua visão indefesa sobre as gaivotas predadoras.

Outra das características destes filmes é dar conta de um mundo em mudança. Por exemplo, tanto Sweetgrass como Foreign Parts perscrutam o fim de algo (o transporte de ovelhas e o quarteirão-oficina, respetivamente), e, nesse sentido, há uma vontade de fixar modos de vida que parecem ir perder-se. Por outro lado, os filmes SEL promovem uma pedagogia do trabalho, da sua força braçal e física. Os dispositivos tecnológicos e o olhar do etnógrafo – estética e etnografia – têm uma função de fixar uma determinada comunidade, as suas formas de trabalho, e nisso assumem uma posição política que decorre de uma estética sensorial. Por isso, os projetos SEL extravasam a ideia de cinema na sala, procurando chegar a dispositivos de instalação, promovendo novas estratégias expositivas. Neste sentido, o SEL acaba por aproximar uma estética do documentário da estética do cinema de vanguarda.

Este foco no Sensory Ethnography Lab permite, assim, perceber como o cinema documental se tem reinventado, tentando promover estratégias novas para a etnografia, tendo em conta a sua posição de partida, uma posição de falta ou de inacessibilidade. O cinema sensorial dos SEL procura conciliar um empenhamento estético com a etnografia. Em certo sentido, não apenas procura: diz-nos que só desta forma somos capazes de entender o outro. A arte e a ciência para compreendermos o nosso mundo.


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