O seguinte texto pretende dar uma panorâmica de Jana Sevcíková, cuja obra é motivo de uma retrospetiva no Porto/Post/Doc 2016, escolhida pelas cineastas Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel do Sensory Ethnography Lab. Para ver os filmes a exibir consulte esta página.
Um dos territórios mais instáveis da política moderna é o das fronteiras da Europa de Leste. Sucessivas guerras, invasões e regimes políticos têm posto em causa identidades autóctones, desafiando as fronteiras físicas e imaginárias. A checa Jana Sevcíková é uma das mais atentas vozes que falam destes fenómenos, através dos seus documentários poéticos, que analisam as contradições e paradoxos que estas situações têm imposto. Desde 1981, enquanto frequentava a famosa escola de cinema FAMU, em Praga, a cineasta realizou sete filmes documentais, onde perscruta diferentes comunidades, envolvendo-se nos seus modos de vida e nos seus rituais. Entre eles, estão arménios, eslovacos, rutenos, romenos, e as identidades híbridas que se formam entre estas nacionalidades.
Os filmes de Jana Sevcíková têm várias características comuns: eles são feitos a partir de um gesto etnográfico, já que a cineasta passa vários anos dentro das comunidades que retrata, apercebendo-se minuciosamente de rituais ou personagens que se destacam. Essa etnografia é aqui tratada cinematograficamente de forma poética, ao trabalhar a imagem e o som de forma exponencialmente criativa, justapondo sons específicos com imagens de paisagens ou dos rostos da comunidade. Esse uso inventivo de som e imagem permite uma necessária sensorialidade da comunidade, já que não é apenas por uma observação passiva que a vemos, mas sim pela capacidade de convocar elementos diversos para uma multiplicidade de indícios da realidade. Esse método suscita uma apreensão poética do real, porque faz equivaler todos os planos do filme: tanto aqueles que são mais explicativos (sobretudo através de testemunhos de membros da comunidade), como aqueles que são mais abstratos (sobretudo os das paisagens atmosféricas).
A paisagem dos filmes de Jana Sevcíková é, muitas vezes, desoladora. Sentimos o frio palpável dos invernos, repletos dos mantos brancos de neve. Essa devastação é partilhada com as comunidades, já que há sempre elementos em falta, isto é, há uma deslocação identitária nestas personagens, que parecem não pertencer ao local. É claro que isso se torna óbvio também pela escolha específica de comunidades que foram obrigadas a emigrar ou sofreram traumas profundos, o que leva a cineasta a procurar uma certa sociedade marginal, feita por grupos – étnicos, religiosos, sociais – que, de certa forma, foram abandonados pelas políticas de desenvolvimento. Nesse sentido, os filmes de Jana Sevcíková são profundamente políticos, dando uma voz aos que foram esquecidos.
A verdade é que as comunidades retratadas não são, de todo, as mais fáceis. Em algumas delas antevê-se mesmo uma espécie de fundamentalismo religioso ou social que coloca o espectador numa posição ambivalente. Mas há, no mesmo gesto, uma profunda humanidade do retrato, que nos devolve um olhar límpido e, por vezes, terno sobre aquelas personagens. São essas as comunidades que serão vistas nesta retrospetiva da autora: em Jakub, persegue-se a história de um homem morto e das contradições que a própria comunidade revela na relação com essa tragédia; em Old Believers, há um retrato de um grupo profundamente religioso, com práticas ancestrais (e, por vezes, violentas), mas para o qual a cineasta olha com uma certa empatia; em Lean a Ladder against Heaven, são homens desesperados por uma salvação e que, apesar das suas obsessões, são tão humanos como nós.
Os filmes de Jana Sevcíková mostram-nos como somos humanos, demasiado humanos. Mostram as contradições políticas do devir histórico, especialmente numa região, a da Europa de Leste, que sofreu continuamente uma redefinição de fronteiras e identidades. O gesto da cineasta é um gesto que devolve uma certa dignidade a estas comunidades esquecidas, fazendo-o através de uma cinematografia poética. Mesmo depois de ver os filmes, perduram os sons dos sinos e das rezas; as árvores esventradas pela intempérie; as faces humanas envelhecidas; o cantar solitário de uma senhora, na mesma ladainha que aprendera em criança. Estes são filmes em que o mundo olha para nós na sua dupla condição de horror e beleza.
A retrospetiva dedicada a Jana Sevcíková faz parte do Foco Sensory Ethnography Lab. Os cineastas Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel (SEL) escolheram a realizadora checa, no âmbito da sua carta branca e como forma de reconhecer o cinema sensorial na prática cinematográfica europeia.