Do Congo à Suécia, do Reino Unido à Etiópia, passando por Portugal e Estados Unidos, a seleção do programa Transmission deste ano dá uma volta ao mundo para retratar a música nos seus mais diversos contextos. Seja como resultado de casamentos criativos – e românticos – ou como um grito de liberdade e insubmissão sexual. Como gesto político, ou como ferramenta política. Como um tesouro preservado por um colecionador apaixonado, ou como o resultado da mais pura experimentação e de processos criativos únicos e imprevisíveis. Por meio de registos no palco ou no estúdio, usando materiais de arquivo raros ou entrevistas inéditas, os sete filmes buscam contar novas histórias a partir da música.
Soundtrack to a Coup d’Etat revela como o jazz e alguns de seus maiores nomes foram usados como instrumentos políticos durante a Guerra Fria, fazendo uso de uma montagem ágil que salta de um material de arquivo a outro na tentativa de reproduzir o ritmo do género musical. Acompanhando o processo de independência da República Democrática do Congo em 1960, o realizador belga Johan Grimonprez conta como os Estados Unidos chegaram a usar um concerto de Louis Armstrong no país africano como pretexto para uma tentativa de assassinato de Patrice Lumumba, principal líder da campanha de libertação congolesa, ao mesmo tempo que artistas negros como Dizzy Gillespie e Abbey Lincoln resistiam a esse uso colonial e imperialista do seu trabalho. Retrato contundente de como a Europa e a América do Norte jogaram o seu xadrez sanguinário usando a África como peão descartável, e de como a ONU se tornou uma mera ferramenta de manutenção da supremacia branca desses dois continentes.
Ainda na África, a música etíope está no centro de Ethiopiques Magnetic Suite. O documentário, narrado em primeira pessoa pelo cineasta Stéphane Jourdain, reconstitui a história de Francis Falceto, produtor, musicólogo e colecionador francês, cujo trabalho de preservação permitiu que uma série de gravações, artistas e músicas da Etiópia – que se teriam, de outra forma perdido devido à repressão e à censura da ditadura que dominou o país na segunda metade do século XX – fossem difundidos pelo resto do mundo.
Utilizando apenas imagens de arquivo, e mesclando novas e velhas entrevistas com o quarteto sueco, o documentarista James Rogan narra, em Abba: Against the Odds, a ascensão de um dos maiores fenómenos da música pop do século XX, desde a sua apresentação ao mundo com o hit ‘Waterloo’ na Eurovisão de 1974 até o fim da banda em 1980 – um furacão que vendeu quase 400 milhões de discos. Em outros espectros da pop, Teaches of Peaches acompanha a tour que assinala os 20 anos do álbum homónimo da icónica – e iconoclasta – artista canadiana Peaches. Um dos maiores expoentes da cena electropunk do século XXI, a cantora revisita os bastidores do início da carreira, ao mesmo tempo em que apresenta no palco a mesma energia sexual insubmissa e libertina que deu origem a petardos como Fuck the Pain Away e Lovertits.
O espírito eletrónico, underground, fora da lei e do it yourself fez-se presente décadas antes, em Free Party: A Folk History. O documentário do inglês Aaron Trinder conta a história de coletivos como o Spiral Tribe, Circus Warp e DiY, responsáveis pela organização de raves gratuitas e clandestinas no Reino Unido, entre o final dos anos 1980 e início dos 1990. Retrato da transição da cultura hippie para a geração new age, o filme apresenta personagens que encaravam a rave não como um evento, mas como um estilo de vida, vivendo na estrada e organizando eventos que reuniam milhares de pessoas e desafiavam a polícia, a repressão e o moralismo do governo britânico.
Do outro lado do Atlântico, mas ainda na década de 1990, os Pavement – um dos pilares do rock alternativo dos EUA – têm a sua trajetória refeita em Pavements. Realizado pelo cineasta indie Alex Ross Perry, o filme é um mosaico de performances ao vivo, videoclipes e entrevistas, misturados com os ensaios para o musical da Broadway ‘Slanted! Enchanted!’, escrito a partir de canções da banda; cenas de uma pretensa longa de ficção, em que os músicos são interpretados por astros teen como Joe Keery (‘Stranger Things’) e Fred Hechinger (‘The White Lotus’); registos da inauguração de um museu sobre a banda em Nova Iorque; e ainda os preparativos para o primeiro concerto do grupo em 12 anos. Tudo isso, mantendo a inconfundível atitude irónica e blasé, marca registrada do quinteto liderado por Stephen Malkmus.
Do indie lacónico para a experimentação sonora, a competição completa-se com Sur La Stre Nuro - Uncharted Soundscapes: Dialogues On Sound Experimentalism In Portugal, onde o cineasta Luís Fernandes conversa com vários músicos da cena experimental portuguesa contemporânea sobre os seus processos criativos, abordagens, instrumentos e reflexões, ao mesmo tempo em que experimenta ele mesmo com a textura da imagem, as cores, intervenções gráficas e os diferentes efeitos de montagem do filme.
Abba: Against The Odds, James Rogan
Reino Unido, 2024, DOC, 90'
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Ethiopiques Magnetic Suite, Stephane Jourdain
França, 2023, DOC, 88'
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Free Party: A Folk History, Aaron Trinder
Reino Unido, 2023, DOC, 107'
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