A certa altura do documentário ‘The Song of Others’ (2024), realizado por Vadim Jendreyko, um dos arqueólogos entrevistados menciona uma das máximas científicas centrais ao seu trabalho: tudo que está enterrado, mais cedo ou mais tarde, será empurrado pela terra de volta à tona. É uma questão de dias – ou, às vezes, de milénios. A lógica implacável pode ser aplicada para além da arqueologia. Há cerca de 80 anos, a Europa tentou enterrar alguns de seus piores fantasmas – o autoritarismo, a intolerância totalitária e supremacista, o fascismo – e eis que, em pleno século XXI, eles têm ressurgido de forma assustadora em vários de seus países.
Ao contrário dessa ascensão extremista, A Europa não existe, eu estive lá, o programa temático do Porto/Post/Doc 2024, propõe escavar e trazer à superfície um contraponto a esse Velho Mundo em decadência moral e política. Para isso, ele parte do ensaio ‘Uma ideia da Europa’, de George Steiner, que defende que o DNA europeu se formou à volta de uma “diversidade linguística, cultural e social, um mosaico pródigo que frequentemente transforma uma distância banal, de 20 quilómetros, numa divisão entre mundos”. E, em tom de provocação, afirma que – num continente marcado pela intolerância a imigrantes e refugiados, assim como pela proliferação de regimes autocráticos de extrema-direita – esse ideal romântico deixou de existir.
O que se vê hoje não é a utopia sonhada nos primórdios da concepção de uma ‘União Europeia’. O festival propõe, então, sair em busca de uma nova Europa, tentando escavar neste programa de sete filmes – oriundos de diferentes países do continente, em contextos históricos diversos, desde 1928 a 2024 – os valores humanistas que permitam sonhar uma nova utopia, um novo ideal, sempre na tentativa de procurar melhor para tentar reescrever a história de forma menos injusta.
E a ideia de busca é algo que percorre todos estes filmes. Em ‘The Song of Others’, Jendreyko retraça a história do continente até às suas origens na mitologia grega, na qual a ‘Europa’ é essa mulher que dá origem a uma sociedade matriarcal. Milénios depois, entre um continente patriarcal e belicista, o filme talvez encontre a poética da Europa, ou quem sabe uma Europa poética, na figura de um ex-militar sérvio que defendeu a Bósnia no sangrento conflito dos anos 1990 e, décadas depois, conversa com o realizador alemão, em francês, sobre o amor.
Esse convite a ouvir ‘a canção do outro’ feito por Jendreyko é levado à letra por Tony Gatlif em ‘Latcho Drom’ (1993). No filme, o cineasta percorre o mundo em busca de comunidades de ciganos e dá voz a este que talvez seja o povo mais ‘outro’ dentre aqueles nascidos na Europa, numa narrativa toda ela conduzida por músicas cantadas pelos seus personagens.
Em ‘Padre Padrone’ (1977), dos irmãos Taviani, a figura paterna materializa-se, mas isso não quer dizer muito. No filme, o protagonista Gavino procura uma educação que lhe sirva de saída do ciclo de miséria, exploração e violência encarnado exatamente por esse pai, símbolo de uma Europa rural e abandonada no passado pela perseguição implacável de um ideal urbano, progressista e industrial.
O desencanto com esse projeto de uma Europa moderna marca a viagem sem rumo de Valto e Reino em ‘Take Care of your Scarf, Tatiana’ (1994), de Aki Kaurismaki – um road movie que começa em busca de vodka e termina num encontro com duas imigrantes, uma estoniana e uma russa, e no diálogo e no afeto possível, apesar da barreira linguística. A Rússia retorna em ‘The Ascent’ (1977), de Larisa Shepitko, no qual dois soldados saem à procura de comida para o seu batalhão no meio de um brutal frio soviético e se deparam com o inverno (a)moral dos horrores da Segunda Guerra, esse grande marco fundador da Europa contemporânea. Por fim, o programa volta ao início: ‘A Paixão de Joana D’Arc’ (1928), de Carl Dreyer, um dos principais precursores do que hoje chamamos ‘cinema’, em que um tribunal inquisidor busca impiedosamente a confissão de um pecado mas descobre, em vez disso, o mito que dará origem à França e a uma das principais democracias do velho continente.
Nesse olhar para as obras de ontem e de hoje, de um extremo geográfico a outro, o Porto/Post/Doc convoca o pensamento desses realizadores sobre como o cinema retratou, e muitas vezes antecipou, as soluções e superações da Europa para as suas piores crises humanitárias. Mais do que uma coleção de filmes, A Europa não existe, eu estive lá é um programa que propõe pensar o cinema com uma consciência política e ética, como uma tese em defesa da multiculturalidade, capaz de contribuir para a discussão coletiva sobre a construção de uma sociedade possível a partir das diferenças. Fica aqui o convite a imaginar connosco a próxima ideia de Europa.
A Ascensão, Larisa Shepitko
Rússia, 1977, FIC, 102'
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A Canção dos Outros - Uma busca pela Europa, Vadim Jendreyko
Suíça, 2024, DOC, 137'
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A Paixão de Joana D'Arc, Carl Theodor Dreyer *
França, 1928, FIC, 81'
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*Sessão especial em formato cine-concerto com criação musical de Alex FX.
Latcho Drom, Tony Gatlif
França, 1993, DOC, 103'
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Padre Padrone, Paolo Taviani, Vittorio Taviani
Itália, 1977, FIC, 113'
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Segura o teu Lenço, Tatjana, Aki Kaurismäki
Finlândia, Alemanha, 1994 · FIC · 64'
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