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Sobre o amor e outros detalhes

por Daniel Ribas / 20 06 2017


(folha de sala de "Terceiro Andar", de Luciana Fina)

A sociedade portuguesa transformou-se profundamente nas últimas décadas. Para alguns, será fácil definir “o que é um português”, mas face a essa transformação, a verdade é que a identidade portuguesa é difícil de reduzir ao cliché que estamos habituados. Muito do cinema documental português recente tem dado conta disso, mostrando a diversidade racial, com especial incidência na zona de Lisboa (são disso exemplo cineastas tão diferentes como Pedro Costa e a dupla Filipa Reis/João Miller Guerra). Luciana Fina – curiosamente também alguém que não é português “de nascimento”, já que nasceu em Itália e se mudou para Lisboa em 1991 – apresenta-nos, em Terceiro Andar, um filme que se dedica a olhar para uma comunidade que não encaixa no perfil do ‘português’: no Bairro das Colónias, em Lisboa, seguimos o testemunho de Fatumata e Aissato, mãe e filha guineenses, duas gerações diferentes de se relacionar com mundo à sua volta.

Luciana Fina, já autora de vários documentários onde procura debater assuntos sobre “representação”, olha aqui as duas personagens sobre duas perspetivas – enquanto mulheres e enquanto faladoras de línguas diferentes. A condição de mulher é afirmada de forma consciente pela forma como a presença de ambas é dominante no ecrã – quer seja pelo tempo, quer seja pelos abundantes grandes planos – mas também pela forma como as duas são conscientes do seu próprio discurso. Isso é especialmente comovente com Aissato, mais jovem e mais determinada, que fala com um imenso à vontade sobre o amor, declarando, de forma poética, a sua ligação com alguém que está fora (em Londres). Essa tomada de posição é marcada pela forma como Luciana Fina insiste em, demoradamente, olhar para Aissato na construção da sua personalidade jovial e espontânea.

Terceiro Andar remete para o espaço fechado de um prédio, que veremos diversas vezes em movimentos graciosos da câmara. É o prédio em que Fina também vive e a que permitiu relacionar-se com as protagonistas. É neste prédio que conhecemos o espaço de Fatumata e Aissato, o espaço da família e da confusão familiar que a certa altura observamos. É pela exposição que Fina nos obriga a olhar o ‘outro’ para ele deixar de ser ‘outro’ e se aproximar de um “nós”. A forma ardilosa com que o documentário nos oferece esse espaço está também exposta na diversidade de línguas que ouvimos. Aqui, a língua é uma afirmação cultural e a tradução que é oferecida permite uma aproximação com os outros, sem deixar de perder uma identidade subjetiva forte. Nesse sentido, Terceiro Andar é uma forma de contestar os espaços identitários estanques, oferecendo formas de nos relacionarmos com todos aqueles que habitam o espaço geográfico português, uma unidade que sai fora do discurso normalizador da identidade. Esta é, assim, a maior conquista deste documentário.


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