Ao longe, algo distante, vemos uma cidade branca. A neve cobriu todos os telhados, fazendo confundir as construções humanas com a paisagem natural. É um retrato belo, quase um postal turístico entusiasmante. O prenúncio de Eldorado XXI, a mais recente longa-metragem de Salomé Lamas, não corresponde às expectativas: o que vemos é La Rinconada, no Perú, o mais alto lugar habitado da Terra e onde – iremos saber mais tarde – a vida humana parece ter perdido o seu valor mais fundamental. Lamas desenvolve uma imagem de uma terra inóspita, cruel e onde acontecem as piores violências. O filme contrasta essas imagens brancas iniciais com um longo plano, onde trabalhadores, de uniforme semelhante, sobem e descem um pequeno monte. A duração extrema deste longo plano estático (cerca de uma hora) reforça a dureza física do lugar e dos modos de vida que impõe ao homem. Para além dos evidentes maus-tratos do local, ouvimos também o som da lama que os passos destes trabalhadores revelam. A noite começa a cair e são apenas as luzes nos seus capacetes que iluminam, de forma ténue, o rasgo de vida que aqui ainda se sente. O espectador não consegue sentir descanso: o constante movimento destas pessoas e a própria escuridão do lugar provocam a sensação de um esforço sobre-humano.
No centro de Eldorado XXI, estão duas ideias fundamentais: o trabalho e a comunidade. Nas vozes em off que acompanham esse plano, ouvimos as mais diversas histórias e testemunhos. Percebemos como o dia-a-dia é duro; como em La Rinconada convergem sonhos de uma vida melhor e como essas ilusões acabam em tragédias humanas. Este olhar é revelador da própria essência do capitalismo da modernidade tardia. Som e imagem alcançam o mesmo valor e ambos têm mais importância do que um sentido narrativo que o filme possa esboçar. A repulsa deste modo de vida dá-se pela experiência do tempo, que é, em Eldorado XXI, uma experiência do trabalho e da sua absoluta radicalização: diríamos que La Rinconada é povoada por “empreendedores” dos tempos contemporâneos não muito diferentes, nas suas procuras, dos apostadores de Wall Street, embora necessariamente menos protegidos.
Por outro lado, aos poucos, Eldorado XXI mostra-nos também esboços de uma comunidade. Nas vozes em off, muitas vezes ouvimos conversas de rádio, anúncios políticos, músicas. Esboça-se, numa tentativa quase desesperada, uma possibilidade de viver em conjunto, minimizando os riscos do trabalho. Mas o filme não nos dá outras imagens: aqui vive-se a trabalhar, no frio agreste e na mais que provável inconsequência (não descobrir o ouro...). Mais à frente, vemos mulheres, que se querem juntar para lutar contra um duplo inimigo: o trabalho e o homem. Mas sente-se, à medida que o filme avança, que chegamos ao fim do mundo, ao local onde o capitalismo mais radical é sinónimo da falta de humanidade. O que resta depois desta interminável jornada? Eldorado XXI é, assim, uma grande metáfora ao século XXI, à sua crueldade e à sua terrível desesperança.
Eldorado XXI foi exibido no Ciclo #01.2017 do Há Filmes na Baixa!