Cinema vivo e Ladrão de si mesmo
Se eu fosse ladrão roubava
roubava aquela menina
roubava a filha ao rei
deixava-a desgraçadinha...
Deixava-a desgraçadinha
Deixava-a no mundo só
Tem pena, meu amor, tem pena
Tem pena, meu amor, tem dó...
A desconcertante organicidade deste filme de Paulo Rocha – tido precipitadamente como testamento pelas instâncias da turbo-recepção – resulta (não só, mas também) do facto de ele se nos oferecer como um segmento de terreno observado em corte, com várias camadas de diversa espessura e TEXTura.
Entre o primeiro projecto "Olhos Vermelhos" (a história de um «padrinho» influente na zona vareira, cujos velhos mirantes jorravam sangue) e este «filme dos filmes», chamado "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" (o título convoca uma cena sumptuosa do Rio do Ouro em que os ranchos de Cinfães e Resende cantam e dançam essa moda tradicional), foram-se decantando outros estados de escrita e de espírito – ora sagas renoirianas bordando desavenças familiares, ora evocações lírico-biográficas da figura paterna rochiana, ora morceaux choisis da paisagem socio-ética do Portugal pós-Abril.
Ora, embora Paulo Rocha fosse useiro e vezeiro em metamorfosear abruptamente a face dos seus projectos, embora ele de há muito praticasse um cinema paradoxalmente avesso à fixação e singularmente próximo dos actores, tempos e lugares, há que confessar que mesmo os seus mais próximos colaboradores tardaram em perceber o rumo que, após a segunda fase da rodagem, o filme iria tomar, ou seja, a evolução para um objecto fílmico compósito e aglutinador de inúmeros excertos que o autor a si mesmo rouba, esculpindo na carne da sua própria obra.
Sublinhe-se que o dispositivo do filme derradeiro não assenta num processo de mera auto-citação. Trata-se de desenhar o golpe de asa que transforma amores e iras, ambições e decepções, desejos e amarguras, num cantar chão, ancestral mas quase límpido, que escorraça os demónios da dor para louvar o desígnio de desfrutar da vida. Ao cabo de uma filmografia onde abundam as figuras de «vanitas», os cenários de cemitério, os eflúvios da morte, os frisos de fantasmas, as cenas de faca e alguidar (e o Paulo ria-se disso, confessando-se incapaz de fazer mal a uma mosca...), "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" resgata a carga «negativa» das imagens que a câmara fixou e a que a montagem imprimiu força de voo, conferindo-lhes outras leituras simbólicas ou sensuais, mas carregadas de electricidade.
Sem descurar as escolhas de referência que lhe são companhia e inquietação ao longo do labor da «mise en scène» (o Paulo gostava de recorrer a essa designação, ostentando desconfiança diante do termo «realização»), o autor buscou o reencontro com personas, máscaras e estâncias da sua obra, des-hierarquizando as funções que elas desempenham numa ficção que se despe de suas roupagens ficcionais. Assim, os quadros de Dominguez Alvarez e Vincent Van Gogh, as nuvens omnipresentes nas gravuras do "Romance do Genji", as letras singelas dos cantares populares, as laboriosas artes do linho, a roda da fortuna dos moinhos, as memórias de guerra de um combatente tagarela, os rastos de uma iconografia da peste, a mistura de planos de filmes antigos com imagens novas habitadas por actores envelhecidos, os movimentos de aparelho vertiginosos, etc., tudo isso concorre em pé de igualdade para a construção de uma obra que arvora os traços juvenis do inacabamento. Génese do fim. E, da mesma maneira que desdenhava as distinções entre formas de expressão artística, Paulo Rocha rejeitava a ideia de um cinema reservado a uns distintos happy fews, abominava consensos estéticos travestidos de audácias design, preconizava o risco da improvisação e fazia durar, para além do razoável, o prazer de deixar o filme procurar-se a si mesmo. Não me cansarei de chamar a atenção para o que há de veramente original no modo como Paulo Rocha conjugou o seu inexpugnável pudor de solitário com um cinema intensamente habitado pelo excesso. Por outras palavras: perante os falsos dilemas de ficção ou documentário, clássico ou modernista, popular ou erudito, etc., Paulo Rocha reafirmou, pela prática, a convicção de que o gesto artístico nasce do conflito e só pode crescer aprofundando-o.
Texto de Regina Guimarães sobre o filme "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava", incluído no Ciclo Paulo Rocha.