Ai, minha senhora!
Eu não gostava que as pessoas morressem, que os lugares desaparecessem, que aquelas nuvens nunca mais se vissem no céu.
Paulo Rocha, O Rio do Ouro, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 1996, p. 11
"Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" poderia ser um filme póstumo por acidente ou um filme testamentário sem vocação, se não se confirmasse antes como filme último de Paulo Rocha. Um filme onde o autor revisita toda a sua obra passada, desdobrando e reunindo, num mesmo movimento, algumas das personagens e situações mais marcantes da sua filmografia, numa longa caminhada entre mortes e cemitérios, bruxas e fantasmas, actores envelhecidos que renovam gestos e palavras ressuscitados aqui e ali, ecos distantes postos em diálogo, antigas perplexidades vistas pela primeira vez. E o que à primeira vista se aparenta à auto-citação e à colagem – mecanismos que, desde o auto modernista que é "Pousada das Chagas" (1972) ao retrato poliédrico em técnica mista que se vê em "Máscara de Aço Contra Abismo Azul" (1989), sempre interessaram Paulo Rocha –, depressa se transfigura num filme-sequência. Não um filme que pretenda atar pontas soltas, alinhando-as numa sucessão contínua, mas um filme que serpenteia através dos “espaços em branco”: pelos não-ditos (onde, pegando nas suas próprias palavras, embora já tudo tendo sido falado, persistem segredos sem ninguém para os ouvir), pelos muitos filmes não realizados (saídos da cabeça e da gaveta para cima da mesa “onde toda a gente traz aquilo de que for capaz e onde depois fica o melhor”), pelas imagens que faltavam e sempre faltarão (porque “o mundo é maior do que o que se vê”). E se para além destas imagens há outras imagens e para além deste filme haveria outras imagens ainda, Paulo Rocha rouba lembranças – pensamentos e palavras, actos e omissões – à sua história familiar e à memória, desses lugares onde, como é evidente, as reminiscências fílmicas e vivenciais se confundem; onde a subjectividade reclamada por aquele que sempre se disse ficcionista “por temperamento” não se distingue das histórias de ouvir contar; onde o quotidiano desmente a sua banalidade extraordinária e o pecado individual se reconhece no coro trágico.
Este é o filme para ver, nas imagens mais recentes, o pai de Paulo Rocha vender um relógio que herdara do avô à personagem Zé dos Ouros, porque o que se negoceia entre "Mudar de Vida" e "O Rio do Ouro" (1998) é, com céu plúmbeo e pés de chumbo, uma contiguidade brumosa, densa, compacta, de tempos e espaços longínquos. Olhares oblíquos algures entre o céu e a terra, seja na vertigem das incontáveis danças de roda, seja entre o tango acima das nuvens de "O Rio do Ouro" e a dança desolada dos amantes de "Os Verdes Anos", sob um tecto saído de "O Último Ano em Marienbad" (1961, Alain Resnais). Entre danças e contradanças, polifonias, afinações e dissonâncias, este é, talvez, o filme musical em que Paulo Rocha realiza um outro filme não realizado. À semelhança de Saudosa Rosa, projecto abandonado de 1961-64, também em "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" coreografa uma fantasia dramática com sentido musical e, aguçando o ouvido aos versos e cantares da tradição popular, acerta o passo de sentidos imprevistos com a forma aberta, como improvisada por Renoir.
O filme derradeiro não é, por isso, aquele que fecha, de modo conclusivo, uma obra; é sobretudo o filme onde o precedente e o consequente se invertem, onde a serpente devora a sua própria cauda e o final se antevê retrospectivamente como princípio, para “encontrar nos olhos de uma mulher desvairada o futuro de uma história já passada”. E é por aí que se começa: da capela e da casa na praia como se via em "Mudar de Vida", avançamos entre-águas e ao som de um mar ultramarino através de antigas fotografias de família (Paulo Rocha em criança com os pais), antes de o ouvirmos, agora em off e em velho, falar da partida do pai para o Brasil. Já “do outro lado do mar”, veremos novamente Paulo Rocha ditar, na pele de Camilo Pessanha em "A Ilha dos Amores" (1982), “Eu vi a luz em um país perdido (ponto).” Assim relampejam nele próprio as primeiras imagens, como vemos no princípio do primeiro filme, quando o jovem realizador – apenas instalado em Lisboa, e logo desesperado com uns amores que não lhe tinham corrido nada bem, suspirando “por vinganças contra a ingrata” – precede, descendo as escadas da Estação do Rossio, a chegada do protagonista de "Os Verdes Anos" à capital. E como ninguém pode deslizar sem ruído e “no chão sumir-se, como faz um verme”, tudo o que está por vir será um estrondoso arrancar de leituras de filmes passados, para fazer das raízes de si mesmo o coração refractário de todos os reflexos. Eis um caso sério, de vida ou de morte, suspenso no espaço intervalar de um filme que mergulha, como nenhum outro, no dilema entre o suspiro final do “Ai, minha senhora!” e o nome de um pai chamado Vitalino.
Texto de António Preto sobre o filme "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava", incluído no Ciclo Paulo Rocha.