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Quando as imagens resistem

por Alexandra João Martins / 22 05 2018


De cima, uma luz fita os rostos da criança e do idoso, imersos na escuridão profunda da noite e da floresta. Que luz é essa? Por um lado, será a dupla revelação dos rostos, tanto no plano narrativo, quanto no da matéria (já que o filme foi rodado em 16 mm). Por outro, será a luz do encontro, do face-a-face, do reconhecimento do outro, de uma alteridade ou, até mesmo, de uma amizade, um devir-outro do mesmo, con-sentir, até porque nunca se chegará a concluir que não se trata, efectivamente, de duas faces de uma mesma personagem em dois momentos temporais. Diferentes. Como nunca se chegará também a concluir se estaremos nos anos 1990, na Guerra da Bósnia, ou então nos anos 1940 da II Guerra Mundial, quando ouvimos «fascista!». Pouco importa... A guerra é a guerra e Gil Mata captura as forças da guerra e torna-as visíveis, inscrevendo-as, de vários modos, no plano da imagem através da criação de imagens resistentes.

Mais do que apresentar estas personagens que resistem à guerra nos mais quotidianos gestos de fuga, o realizador dobra o plano narrativo na matéria. Resiste ao tempo cronológico, na medida em que a duração do filme coincide com a duração das acções, abrindo um tempo único. Resiste à montagem, privilegiando longos planos-sequência. Resiste ao diálogo, que surge uma única vez, já quase no final do filme, privilegiando o plano sonoro do rio que corre, no tintilar permanente das garrafas, da respiração ofegante do velho, dos bombardeamentos, e, por vezes, dando a ver aquilo que a plano visual não dá. O filme encerra ainda em si um paradigma: por um lado, a câmara raramente cessa de se movimentar, embora lentamente; por outro, o enquadramento é sempre estável, resistindo simultaneamente à velocidade e à fixidez. Mas resiste sobretudo à escuridão das trevas: onde tudo se faz negro, os mais ínfimos lampejos sobrevêm.

Alexandra João Martins
Porto/Post/Doc

 


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