Sobre "O Canto do Ossobó", de Silas Tiny
Uma cabrinha arrancada à mãe pode ser uma das várias linhas metafóricas desta busca identitária numa ilha onde a crueldade não se fez rogar. De São Tomé e Príncipe, aos 5 anos Silas Tiny emigrou para Portugal, esquecendo “o passado como quem esquece um trauma, dissimulando na pele a “cicatriz dessa ferida difícil”. O filme descreve o regresso simbólico à sua ilha natal. Ensaio em torno de memórias e do palimpsesto histórico que as ruínas e floresta desvelam e escondem, o registo autobiográfico não se torna demasiado confessional, mantendo o tom sereno e reflexivo no qual as palavras nunca se sobrepõem ao poder da fotografia que, majestosa, faz desfilar planos fixos da pacata vida da ilha. As casas sob palafitas com os animais a cirandar, as lavadeiras num rio generoso, aldeias de pescadores com o essencial à vida, o menino no cacaueiro e as brincadeiras maldosas de grupinhos de crianças, a vegetação luxuriante num país onde tudo é fértil – até o horror.
O filme adentra no mundo das roças, imponentes estruturas de produção agrícola durante o ciclo de cacau e café nos finais do séc. XVIII e inícios do século XX. Estruturas ainda imponentes quando as visitamos numa realidade pós-colonial mas plena de continuidades. A ironia das ruínas do hospital onde a irmã do narrador nasceu mostra como “passado e presente se distinguem apenas pelo desgaste da madeira”. No tempo colonial o país, gigante exportador de café, tornou-se “propriedade privada dividida em feudos”. Cada roça tinha as suas regras, o seu regime disciplinar sob a alçada déspota do Senhor da roça, que nos seus aposentos gozava de diversões e mordomias e com negras à disposição; e a sanzala, onde os escravos, e mais tarde os serviçais, viviam miseravelmente as horas minguadas que não estavam a trabalhar. Podemos reconhecer este modelo “casa grande e sanzala” na roça Rio do Ouro, fundada em 1865 (hoje a Roça Agostinho Neto), e na roça Água-Izé (de 1854), que aparecem no filme, nos tempos seguintes à independência nacionalizadas e transformadas em cooperativas. O filme consegue fazer emergir essa tensão entre tempos: consegue dar a ver a crueldade do passado e o beco sem grande saída do presente, sem entrar em juízos diretos mas sim uma incomensurável e não-dita perplexidade. Se em 1876 foram declarados livres os escravos de São Tomé, “o abismo continuava” para os serviçais e contratados a quem eram infligidos castigos físicos, de acordo com o estado de espírito do patrão – já muito perto de nós. Nas mesmas roças onde a miséria continua colada à degradação dos edifícios, ruinas onde as crianças sem cuidados de saúde e pouco acesso a escola são os reis, habitação nada condigna, agricultura que nem chega para subsistência e um horizonte curto de possibilidades de vida.
Importa que este filme seja amplamente visto. Primeiro porque a história da escravatura praticada sob o império e colonialismo “à portuguesa” precisa de ser conhecida na sua complexidade, contrapondo a realidade dos factos ao persistente mito lusotropicalista dos brandos costumes. Depois, por ser a voz de um santomense que – qual a cabrinha à procura da sua cria – perscruta a dor de “homens e mulheres esgotados pelo peso do trabalho”, os fantasmas de tantos anónimos que emprestaram a sua força de trabalho ao regime de plantação para avidez e poder alheios, que contribuíram com o seu suor sob torturas para as fortunas que iam fazendo a metrópole.
A sequência de imagens de arquivo, sem comentários e acompanhadas por uma música soturna, é particularmente forte. Vemos a linha de montagem das roças: apanha do cacau, descascar e encher os cestos, moagem, secagem, os carris de transporte; o círculo dos trabalhadores e famílias com ar desolado, o mesmo ar dos doentes nos hospitais dos roceiros, a arrogância dos senhores coloniais que viviam sob uma aparência de que a folclórica receção ao presidente Carmona em 1939 é manifesto. Ouvimos o depoimento de um contratado de Cabo Verde, que ganhava 20 escudos de salário por um trabalho desumano sem folgas, nomeadamente a carregar cestos de excremento à chuva.
O filme refere ainda a caricata visita do astrofísico Arthur Eddington à ilha do Príncipe para observar o eclipse total do sol e comprovar a teoria da relatividade de Einstein (em 1919), ao mesmo tempo que servia para atenuar a contestação inglesa às condições de trabalho dos serviçais. E outro episódio macabro da história de São Tomé e Príncipe: O massacre de Batepá em 1953. O governador Gorgulho mandava calar a insurgência contra a exploração. Dos muitos assassinatos quase não há registos, entre os quais o do avô do narrador. O avô que contava as lendas de animais misteriosos que habitam a floresta como o Ossobó, o pássaro mítico com o lamento no canto, distraído e atraiçoado pela cobra matreira. Ou a sereia branca temida e admirada pelos seus poderes sobrenaturais. Valha-nos o pensamento mágico que resiste ao roubo da imaginação e aos tempos nefastos.
Marta Lança
Editora do BUALA