Filmar o mundo do trabalho depois da «crise».
Durante anos, anunciava-se o «fim do trabalho» com um desarmante despudor. As tecnologias, agora não tão novas, davam então o mote para umaorgianiilistaque despedaçava retoricamente as marcas do mundo industrial. Numa atmosfera saturada por argumentos tardo-modernos anunciava-se, em tremores quase místicos, a desmaterialização da «economia de signos», a liquefação da modernidade ou a promessa de um «sistema de pós-escassez». Decretada a iminente extinção deste mundo, sobretudo os operários pareciam deslizar insensivelmente para se tornarem numa sobrevivência vestigial, estigmatizados como presenças anacrónicas entre a paisagem em tons garridos do capitalismo contemporâneo. Esta canduraturvava-a, ocasionalmente, um miasma, é certo. Numa sociedade ansiosa por esquecer os dramas e os dilemas do trabalho, insinuava-se um leve travo a suorde tempos a tempos, logo areja do com nova descarga sobre a «flexibilidade», a «desregulação» e a «globalização». Embora seja desmerecido para todas as vozes que advogavam uma alta dose de cepticismo diante destas teses, só a «crise» veio provar a inanidade e a precipitação dos prognósticos sobre a «morte» do trabalho. Golpe de violência económica que eletrizou as consciências anestesiadas pelos simulacros da «sociedade do consumo», os sofrimentos massivos suscitados pela «crise» tornaram um pouco periclitantes os alicerces ideológicos desta «hiper-realidade».
Provas, exorcismos (Susana Nobre, 2015) - que recupera o título de Henri Michaux – acompanha a tentativa de um «velho» operário para lidar com uma existência contestada. Depois da empresa em que trabalhou durante tantos anos ter sido tragada pela insolvência, o sentido da vida vê-se em perigo. O trabalho que lhe sorveu as energias, trazia-lhe, contudo, um invólucro de humanidade entre a hostilidade e as agressões da fábrica. O paradoxo consiste, aqui, em que esta revelação requereu uma catástrofe que a resgatasse das camadas invisíveis do imaginário. A mestria de Susana Nobre passa por ter a sensibilidade necessária para mostrar que, por entre os medos e as angústias, a «crise» soltou uma carga imensa da esperança que estava aprisionada no magma de significações sociais do proletariado. A extraordinária aparição de uma cena da crucificação pintada por André Gonçalves, pintor português do século XVIII que a realizadora conhece admiravelmente, insiste sobre esta ideia de uma tragédia vivida sem paroxismo, uma tristeza em suspenso que aceita o sofrimento como uma passagem dolorosa, mas provisória antes de uma triunfal ressurreição. As escatologias aqui equiparadas, a católica e a operária, podem ter sido puídas pelos séculos que passam; o «espírito da utopia» (Ernst Bloch) vibra e estremece, todavia.
Entre os mitologemas de nascença do cinema encontrava-se a «saída da fábrica». A amnésia programada do mundo do trabalho, acompanhada pela anemia crónica da sua representação política e mediática, está longe de provocar um arrebatamento nostálgico por um passado que não era um idílio. Antes, uma irrupção inesperada do passado. Os traços do mundo industrial que são cristalizados pelas fotografias com que abre Revolução Industrial (Frederico Lobo & Tiago Hespanha, 2014) são espectros que assombram o presente de destroços em betão e corpos desafetos da indústria do Vale do Ave. Quando Werner Herzog quisesse descer o Rio Ave para encontrar um paraíso perdido, como fizera na Amazónia, veria que lidava novamente com uma incursão desmesurada para conquistar um império de promessas de solidez e proteção exageradas pela maquinaria e pelo paternalismo patronal. As memórias que latejam ainda nas rugas dos velhos operários, as manchas iridescentes de óleo, de tons de azeviche, sobre a superfície das águas, a luz baça que entra pelas janelas escancaradas das fábricas são um resto de um mundo, que larga atrás de si um rasto para a compreensão da desarmante vulnerabilidade dos homens e mulheres de hoje diante das convulsões de uma região (des)industrializada.
A fábrica de nada (Pedro Pinho, 2017) é uma história de amor. Não só porque deparamos, de início e a terminar o filme, com os corpos de um homem e uma mulher empenhados numa salvação sensual para um lar encoberto pelas sombras de um futuro incerto e acossado pelas perdas de ambos, que têm atrás de si um passado que gostariam de preservar porque lhes define a identidade. Também é uma história de amor porque encontramos aqui uma elegia ao amor pelo trabalho. Entre todas as contradições e volubilidades características das paixões assolapadas e incontinentes, temos um elogio da carne do mundo operário, arrepiada pela tensão criada pela «crise» económica e pela excitação de uma alternativa desconhecida, a auto-gestão. Esfolar uma criatura ainda quente, eis o que vemos suceder aos operários colocados diante da súbita obsolescência trazida pela «insolvência» e pela «reestruturação» da empresa. Por entre a vertigem do desespero, depois da tristeza e da raiva iniciais, surgem progressivamente impulsos e anseios para salvaguardar a dignidade e o orgulho – que culminarão com uma coreografia em que se ensaia uma nova música para a vida laboral. «Nós somos o capitalismo», ainda protesta acusatoriamente, autoculpabilizando-se talvez, um operário a terminar o filme. A verdade é que o desespero perante o desemprego ou a emasculação não podem, nessa altura, resolver-se com a intoxicação voluntária pelo consumo ou com um regresso ao que havia antes. Ficamos sem respostas definitivas, apenas com a responsabilidade de procurar uma solução por conta própria.