I am not your negro trata dos mecanismos de criação e da representação do negro pelo branco ao longo da história dos Estados Unidos da América. Narrada num tom intimista (a voz é de Samuel L. Jackson) e sublinhada pelo jogo das muitas imagens a branco e preto, este filme-documentário nomeado para os Óscares, lança mão de um modelo interpretativo, muito articulado e profundo, das relações entre negros e brancos, que se expressa em metáforas visuais e textuais de grande impacto.
O realizador, Raoul Peck, parte do texto de James Baldwin, Remember this House (30 páginas incompletas), para nos dar um testemunho do modo como aquele intelectual-ativista descobriu que grande parte dos seus concidadãos eram seus inimigos. Por isso, Baldwin emigra para Paris, duplamente marginalizado por ser negro e homossexual, mas também por que não se revê na América dos hambúrgueres, da Estátua da Liberdade, dos waffles ou do Empire State Building. Mais tarde, descobrirá que lhe fazem falta os seus, as suas ‘conexões’: a família, amigos, a comunidade onde nasceu e cresceu, uma comunidade que o reconheça nas suas singularidade e humanidade. Regressa por pensar que deve isso à sua própria comunidade. Ficar a assistir, de longe, não é uma opção.
Mas Baldwin (com Malcolm X, Martin Luther King Jr e Medgar Evers) recusa ser esse negro que lê nos olhos do branco e que tantos interiorizam desde tenra idade. Os que se recusam a ser essenegro são mortos, batidos ou violentados. Na realidade, como em muitos dos filmes do século XX, cujos excertos são aqui recuperados, a América exclui-se a si própria ao querer excluir uma parte de si mesma. Mas a América só será América quando quiser ser toda a América e aceitar olhar-se a um espelho não deformado e inclusivo. Baldwin, como Fanon, Said e Hall – intelectuais da diáspora – sentem-se estrangeiros no seu próprio país.
O que mais impressiona neste filme-documentário é o processo de instabilização das categorias de branco/negro, vistas normalmente como fixas, estáveis e ‘naturais’. O filme aborda, precisamente, o modo como a categoria ‘negro’ resulta da projeção que o branco faz dos seus próprios medos e fantasias (e de como, neste processo, ele se torna um ‘monstro moral’). Trata, ainda, dos diversos modos de resistência à violência, da sexualidade dos negros, das relações amorosas entre negros e brancos e das possibilidades de reconciliação, apesar da mistificação que confunde realidade e fantasia, culpa e projeção, elementos que se articulam na cultura norte-americana para simplificar uma realidade que é profundamente complexa.
Como sublinha Baldwin, o mundo não é branco. Nunca foi branco. Branco é uma metáfora de poder: o negro foi inventado pelo branco, porque precisou dele. A questão é que o branco tem de se perguntar porque teve essa necessidade. Dessa resposta depende o futuro. E enquanto ela não chega, resta a afirmação da esperança, trespassada de uma indomável resistência: Não sou o teu negro!