DEIXOU BRUXELAS A ARDER: Chantal Akerman nasce a 6 de junho de 1950, em Bruxelas, descendente de uma família de judeus polacos. Radical, caminhou sempre nas extremidades, firmando, ao longo dos mais de 50 títulos, um percurso ímpar, disperso entre géneros e formas várias que atravessam a ficção, o documentário, a televisão, a video-instalação, a performance. É com a câmara virada para si própria que em Saute Ma Ville (1968), primeiro filme e filme de escola, dá a ver um sentimento de inadaptação que não mais a abandonará, deixando antever, já pelo título, a sua intenção explosiva. Porque não há redefinição sem tabula rasa, engendrou, com o seu cinema, planos de destruição para a sociedade. Destruição dos códigos geracionalmente transmitidos. Destruição dos tempos e dos automatismos. Destruição das stars e da ilusão. Destruição das expectativas que o feminino sobre si carrega. Aos 25 anos, já regressada de Nova Iorque, assinará em Bruxelas a sua obra-prima - Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) - uma revolucionária formulação da sintaxe cinematográfica, fundada sobre uma minuciosa estrutura laboratorial que faz da duração a preparação indispensável para o conhecimento do objeto. Intimamente alicerçada na passagem do tempo, esta construção definida por blocos, abertos por intertítulos que correspondem aos dias – de terça a quinta-feira – em que acompanhamos o quotidiano de Jeanne, dá a sentir a mortalidade contida no peso das horas, num autêntico tratado sobre a durée que se distende ao longo de 201 necessários minutos e entre poucos mas longos planos-sequência. Em cada dia que repete o anterior, a monotonia das mesmas tarefas de dona de casa constrói a opressiva rotina desta viúva de meia idade que testemunhamos de perto. Envoltos numa brutal sinfonia de banalidades, sofremos até ao sufoco os limites deste mundo historicamente destinado ao feminino. O rigor dos planos fixos, a luz fria, o silêncio cortante, a geometria das linhas que delimitam cada cenário, os planos protagonizados pelos micro-gestos que inquietam a imobilidade geral de tudo – sem picos dramáticos, o tempo adensa-se e, no rumor que nasce das pequenas inquietações que vão sabotando a ordem esperada dos dias, instala-se o drama.
AS MEDIDAS DO EU: Era John Berger quem tão bem sintetizava: ‘‘To be naked is to be oneself. To be nude is to be seen naked by others and yet not recognised for oneself’’. Se, após a fatídica maçã proibida, o conceito de nudez foi criado no olho daquele que vê, a história da representação do feminino pela pintura europeia, nas mãos dos homens, evolui indissociavelmente segundo uma concepção das expectativas do espectador artístico. Os nús são essencialmente femininos, no habitual langor dos seus corpos disponíveis e poses apáticas, mas aquelas mulheres não estão nuas como são, estão nuas como são vistas. Deitadas numa cama, não são retratadas: a personalidade está ausente de cada uma dessas inertes figuras que fitam o espectador placidamente, feições de uma facilidade que o pintor lhes atribuiu. Em 1974, Akerman realiza a primeira longa, Je Tu Il Elle, uma essencial negação das convenções que estereotiparam as representações das mulheres pela arte europeia. Neste filme, a artista dá literalmente corpo ao manifesto, numa exposição direta que, culminante com o ato homossexual feminino, constitui uma laminar cisão com todas as construções pelas quais a arte, durante séculos, considerou o espectador masculino como destino do retrato da nudez feminina. Esta mulher já não é a figura passiva que aguarda, convidativa, no seu leito desarmado: a sua nudez é uma redução do seu corpo à sua solidão indivisível, num abandono autónomo. No interior de um quarto imune às coordenadas da sociedade, enfrenta de si para si uma purga duríssima que se traduz num trabalho de escrita, durante o tempo necessário até cumprir a sua lei interna. Neste projeto de reconstrução do feminino, a tensão entre o interior e o exterior é central: contra a casa-cárcere que critica em Jeanne Dielman, com o seu nunca-acabar de encargos domésticos, Akerman isola o conceito de quarto como um símbolo de autonomia, momento em que a sociedade se interrompe para possibilitar à mulher o seu projeto de emancipação. La Chambre (1972), Je Tu Il Elle (1974) ou Un Divan À New York (1996), participam desse movimento de elevação da vida privada do ser: o quarto é medida do eu. E, se tal retiro para reflexão e autoexame fora lugar por excelência da invenção do ‘‘homem novo’’, estes ganhos renascentistas demoram uns tantos séculos a chegar ao feminino. Será preciso Virginia Woolf meditar acerca de um “room of one’s own”, que faz da reclusão a condição indispensável para um projeto pessoal de desenvolvimento da identidade, para se esboçar um justo entendimento do feminino como uma construção e não como um dado adquirido. Se a solidão, derradeira medida da consciência, serve a interrupção temporária da sociedade no corpo, é simultaneamente indispensável para a preparação do indivíduo para a reflexão dessa mesma comunidade. Esta tão basilar correspondência entre a intimidade e o desenvolvimento da criação artística, que o legado de Chantal sintetiza, cumpre-se em toda a sua simplicidade na curta-metragem Trois Strophes Sur Le Nom de Sa Cher (1989), protagonizada pelo abandono de uma mulher ao seu violoncelo, e a sua compenetração prolonga-se num fluxo ininterrupto, alheio aos ritmos das vidas vizinhas e à passagem do tempo.
IMOBILIDADE: O que é a preguiça senão basicamente um choque entre o tempo que um dado corpo leva a cumprir uma dada ação e as expectativas que envolvem os ritmos que, face às suas capacidades, lhe são eficazmente devidos? Em 1986, Chantal realiza e protagoniza um segmento de Seven Women-Seven Sins, chamado precisamente Sloth, que descreve esse ponto suspenso de um corpo entorpecido que retira prazer do não cumprimento imediato de um dever, saboreando viciosamente a demora do seu pecado secreto. Não é somente um retrato do ócio ou uma confissão do seu contributo para o caos do mundo. Trata-se de uma destruição estrutural até ao osso da ordem - o tempo. Entre largas passadas que se demoram, também em L’Homme à La Valise (1983) é a própria Chantal quem protagoniza este manifesto em compasso lento, o contrário da eficácia, da precisão, da economia do tempo. Face às pressas impostas pela sociedade contemporânea, propõe uma sabotagem a comando da apatia e da arritmia e demora-se, na languidez de um corpo repetitivo. No seio da velocidade que tudo comanda não é a imobilidade, tantas vezes, a mais radical das coordenadas? Je Tu Ill Elle (1974) inicia-se precisamente com um plano emblemático deste chamamento para a inércia: uma jovem figura feminina sentada numa cadeira fixa, rigorosamente imóvel, uma parede em branco. Cravada na sua paralisia, numa negação das possibilidades de movimento.
CORPO CONCRETO: Escreveu José Gil que ‘‘a consciência do corpo é a consciência do movimento’’, e é em busca de uma proximidade do real que Chantal combina a representação, a dança, a performance para um retrato real dos corpos até ao seu despojamento. Je Tu Ill Elle (1974), Jeanne Dielman (1976), Toute Une Nuit (1982), J’ai Faim J’ai Froi (2008), Golden Eighties (1986), Saute Ma Ville (1968), praticamente todos os seus filmes de ficção servem como exemplos do minimalismo assente na concentração de uma intenção num só gesto, potenciando-o em significância e consequência. Essa fragmentação simbólica, que acontece como uma reconstrução da gramática dos gestos e dos movimentos, é uma proposta de análise estrutural da relação entre estes corpos e o seu meio envolvente, numa reconstrução da posição da mulher face às dinâmicas da tensão feminino/masculino. Este é irredutivelmente um cinema de mulheres, tanto no elenco como na equipa técnica. Apesar das gavetas de experimental e avant-garde, o centro da obra de Akerman é oposto à abstração – a força do seu cinema alicerça-se numa interpelação concreta, na explicitude das fundações materiais. Inscreve a linguagem direta dos corpos na universalidade dos mais simples enunciados humanos: as raparigas de J’ai Faim, J’ai Froid (2008) estão unidas por circunstâncias de fome, frio, juventude e falta de dinheiro; a mulher e o homem de Toute Une Nuit (1982) aproximam-se porque partilham da mesma solidão; as raparigas de Portrait d'une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles (1994) alimentam a curiosidade pueril com a mesma inexperiência; a monotonia das tarefas repetitivas dá-nos a sentir o tédio profundo de qualquer dona de casa em Jeanne Dielman. Em suma, o corpo é reduzido à sua intransitiva condição de unidade basilar. Há uma qualidade esquemática, coreográfica, nestas formas que traduzem a proximidade de Chantal da dança contemporânea, que descobrira a fervilhar aquando da sua chegada a Nova Iorque, nos anos 70 – e à qual dirigirá, em 1983, uma mais concreta homenagem com Pina Un Jour À Demandé (1983). Defendendo que fazia ‘‘Filmes Chantal Akerman’’, sempre recusou rótulos de autora feminista ou queer, o ser associada a quaisquer guetos ou até ser alinhada com cineastas a que é contemporânea mas com quem não se identificava, como Varda ou Duras.
A IDENTIDADE DA MEMÓRIA: Dominique Paini relembra como, tal como Philippe Garrel, Akerman pertence à geração pós nouvelle vague, que se distancia dos precedentes cineastas-críticos com um conjunto de primeiros filmes livres, intimistas, auto-expositivos e escassos em diálogo, ‘‘imunes à logorreia’’ que atravessara a década anterior do cinema francófono. Cineastas à frente e atrás da câmara, alicerçam estas insubstituíveis obras na identidade da memória pessoal. Muito particularmente, são obras fundadas numa ideia de genealogia: como é estrutural ao cinema de Garrel ser filho de Maurice e seguidamente pai de Louis, Chantal assumiria em I Don’t Belong Anywhere (2015) que ‘‘a minha mãe é o centro do meu cinema’’. E é precisamente à mãe Natália, sobrevivente do Holocausto, a que dedica uma despedida, no retrato íntimo que testemunhamos em No Home Movie (2015). Neste último projeto, abandona Bruxelas como no primeiro, adiantando pelo título o seu lamento: nos quartos esvaziados da presença, instala-se o vazio defronte da origem tão literalmente perdida. Falta a casa, ponto de fuga dissolvido. A judia belga que aos 15 viu nascer em si a vontade de fazer filmes depois de uma sessão de Pierrot Le Fou, decidiu deixar-nos aos 65 anos, depois de ter assinado alguns dos maiores filmes alguma vez feitos. Ficam as palavras que Philippe Garrel lhe dedica, à despedida: “A todos aqueles que não se podem satisfazer com a vida tal como ela é, é a arte que os salva”.
(Este é o texto integral de um excerto publicado no magazine do Porto/Post/Doc 2015 a propósito da homenagem à cineasta realizado nesta edição do festival).