“The cinema must restore our belief in the world (...) before or beyond words”. Gilles Deleuze
Uma das expressões mais bizarras da cultura contemporânea é a cinefilia no seu sentido mais puro: o amor ao cinema. A cinefilia é algo que se vive, que se transmite, que se trata com o extremo cuidado das coisas frágeis. Os filmes bons salvam a vida dos cinéfilos, repõem uma certa bondade intrínseca do mundo. Se não fosse pelos filmes, pelas aulas ou pelas palavras, pelo menos Thom Andersen seria um cinéfilo, alguém que não distingue no mundo o cinema do não-cinema.
Professor da prestigiada CalArts, escola de artes em Los Angeles, Andersen, nascido em Chicago no ano de 1943, é um cineasta de afetos, compondo uma filmografia não muito extensa, mas particularmente bem articulada e pensada ao pormenor. É talvez a sua faceta pedagógica que nos obriga, passo-a-passo, a voltar a olhar para o cinema ou para lugares de memória (mais uma vez, são indistintos se esses lugares pertencem às imagens em movimento ou à realidade quotidiana), descobrindo o que está por trás, a tensa política do mundo em cada rosto de uma estrela de Hollywood ou do mural comunitário perdido num beco de Los Angeles.
Formado pela USC School of Cinematic Arts, de Los Angeles, Thom Andersen fez os seus primeiros trabalhos académicos ainda nos anos sessenta, com as curtas-metragens: Melting (1965), --- ------- (1966–67) (aka The Rock n Roll Movie) e Olivia's Place (1966/74). É, no entanto, com a sua primeira longa-metragem que o realizador produz o seu primeiro trabalho de fôlego, analisando a arqueologia do cinema nos trabalhos do fotógrafo, pioneiro e experimentador Eadweard Muybridge. Neste filme, Andersen mostra já a sua acutilância na análise política das imagens e da sua própria produção. Neste sentido, veremos, aqui e em filmes posteriores, a forma como o seu trabalho resgata as imagens perdidas nos arquivos do tempo e olha para elas com um novo olhar, comprometido numa visão marxista do mundo: quem explora e quem é explorado.
Por exemplo, com Red Hollywood, de 1996 (realizado com Noël Burch), Thom Andersen analisa os traços comunistas de argumentistas e realizadores que foram apagados da história do cinema depois da caça às bruxas protagonizada pelo senador Joseph McCarthy e de que resultou uma blacklist destes e de outros autores. Neste filme, o cineasta vai, pacientemente, desocultando essas imagens e sons, vendo neles a marca da denúncia social e de um reverso total do cinema de estrelas de Hollywood. É um filme de extrema pedagogia (e foi editado também um livro homónimo) e lança, definitivamente, o método de trabalho que culminou na sua obra-prima: Los Angeles Plays Itself, filme que começou por ser um conjunto de aulas que Andersen orientava na CalArts.
Los Angeles Plays Itself é um vídeo-ensaio avant la lettre, em que é desmontada a representação do espaço no cinema. Para Andersen, o espaço é um fator político porque implica um envolvimento do realizador com o que é retratado. Em Los Angeles, o cineasta mostra como a cidade é utilizada de forma caótica, anacrónica ou cómica, precisamente por ser a meca do cinema e onde todos os estúdios se encontram. Por isso mesmo, Andersen mostra os filmes verdadeiramente concordantes com a realidade do espaço, com aquilo que é mais profundamente identitário da cidade, em contraste com aqueles em que a cidade é um mero estúdio para inventar outras realidades. O método será sempre o mesmo: excertos de filmes montados sobre uma voz-off cristalina, pedagógica e mesmo irónica. É, aliás, a ironia uma das marcas do realizador, como se apenas olhando dessa forma fosse possível afrontar a máquina industrial de Hollywood.
A ironia é, muitas vezes, associada a uma assumida nostalgia – uma das marcas de um cinéfilo inveterado: saber que o grande cinema é raro e que o passado encerra obras determinantes da história da arte. Essa nostalgia, ao lado de uma vertente mais política, está presente em Get Out of the Car, em que Andersen mostra como Los Angeles está num processo de apagar o passado. Curiosamente, esta curta-metragem é muito divertida – pelos apartes do próprio Andersen – e a ironia está logo patente no seu título: Los Angeles – a cidade das grandes autoestradas – precisa de voltar a olhar para si mesma, caminhar pelos seus becos e pelas suas ruas.
A ruína, o passado e aquilo que desaparece com o tempo resulta também no filme mais português do cineasta: Reconversão, uma obra realizada em Portugal e sobre a obra do arquiteto português Eduardo Souto de Moura. Trocando o 16mm nostálgico de Get Out of the Car, por uma técnica de timelapse inventada pelo seu colaborador e cineasta Peter Bo Rappmund, em que o tempo parece suspenso, revela-se como a obra de Souto de Moura é tanto construção como ruína (é sintomático que uma das obras mais vibrantes deste documentário seja um edifício que o arquiteto projetou sobre a ruína de um anterior projeto seu).
O trabalho de Thom Andersen pode ser comparado ao de um arqueólogo que resgata as imagens dando-lhes novos sentidos, provocando uma revolta das próprias imagens, agora isoladas e transcendidas das narrativas onde estavam inseridas. Isso é evidente em The Thoughts That Once We Had (2015), uma história pessoal do cinema, que volta ao sentido pedagógico-político de Los Angeles Plays Itself, mas agora numa abrangência absoluta das imagens em movimento e da sua história. O filme é uma espécie de glória do cinéfilo, uma ambição em ver o mundo através destes filmes e com eles provocar um rutura com o devir capitalista do futuro. Para isso, Andersen escreve no final deste filme: “To those who have nothing must be restored the cinema”. O cinema como salvação do mundo é, pois, na cinefilia extremada de Thom Andersen, uma arma da revolução.
(Este texto foi publicado no magazine do Porto/Post/Doc 2015 a propósito do foco ao cineasta realizado nesta edição do festival).