O filme inicial
O segundo filme de Paulo Rocha é, na verdade, um primeiro filme. Se Verdes Anos (1963) representa o encontro com Isabel Ruth – bailarina tornada atriz e musa do cineasta até ao fim – e as tensões sociais no seio de uma Lisboa em transformação – na encruzilhada entre o provincianismo dos migrantes, a cultura saloia da periferia e a modernidade burguesa – Mudar de Vida (1967) concentra-se na atualidade das origens. Depois de provas dadas com o filme de estreia, Paulo Rocha sente-se autorizado para regressar à praia do Furadouro onde passou os verões da infância e dedicar-se a um mundo destinado ao desaparecimento: as casas de pescadores assentes no areal engolidas pelo mar bravo do inverno, o desmantelamento das últimas Companhas, a guerra em África que leva os rapazes, a emigração dos jovens para a cidade ou para o estrangeiro. Mas o olhar de Paulo Rocha é neste filme inicial como em toda a restante obra – de A Ilha dos Amores (1983) até O Rio do Ouro (1998), As Sereias (2001), Vanitas (2004) ou Se eu fosse ladrão roubava (2013) – o olhar de um cineasta assaltado por visões. Sobretudo de cinematografias particulares – Renoir e Mizoguchi – e da pintura antiga e moderna. Sem tese nem programa teórico, Paulo Rocha é dos raríssimos autores nacionais que mais radicalmente explorou a fidelidade a uma visão fulgurante, épica, tantas vezes desproporcionada do pequeno mundo português, explorando efeitos de colagem, o mítico (as histórias contadas, o rito primordial da dança em volta da fogueira mas também o mito do progresso), a iconologia (um Cristo na via sacra transfigurado em vareira que carrega à cabeça um molho de caruma e cai no chão por um mal de coração, clínico e romântico) e a anacronia das imagens (as praias do norte, nos anos 60, revelam--se as paisagens diluídas pela neblina no Japão).
Por isso, Mudar de Vida reflete um país em mudança – inelutável como a passagem do tempo – onde os autocarros ganham terreno aos barcos e os homens fortes do mar são sujeitos, como meninos, a testes psicotécnicos donde depende o emprego nas fábricas. Paulo Rocha identifica a sobranceria de um mundo dominado pela razão urbana e pelo saber técnico que encobre e seca a sabedoria antiga, a memória, o pensamento mítico. E enquanto descreve o tempo presente e prosaico, o cineasta reconhece nele a sobrevivência das formas arcaicas, inteligentes e irresolúveis.
Existem, neste filme, dois irmãos, duas mulheres e dois tempos culturais em confronto: Adelino, o irmão que partiu e Raimundo, o irmão que ficou; Júlia, a mulher de trabalho vergada ao sacrifício e Albertina, a mulher solteira que rouba o dinheiro da caixa das esmolas, decidida a fugir para França. A primeira mulher interpretada por Maria Barroso – que perda precoce de uma atriz! – julga-se condenada à morte enquanto a segunda, insubmissa e interpretada por Isabel Ruth, aponta com firmeza a faca ao homem que a persegue e avisa: “eu mato-te!”.
Mudar de Vida é um primeiro filme noutros sentidos ainda. Por uma série de circunstâncias, nenhum dos nomes inicialmente previstos por Paulo Rocha para a escrita do guião – Nuno Bragança e, depois, José Cardoso Pires – conseguiram aceitar o convite e um deles sugeriu um poeta discreto do norte chamado António Reis que, menos ocupado em sucessos, confirmou a disponibilidade para escrever diálogos e acompanhar a rodagem. Mudar de Vida representa, assim, o encontro de António Reis com o trabalho coletivo num plateau de cinema que faria dele, no lapso de vinte anos, um dos mais singulares cineastas portugueses. Frases como “O que vai ser de nós e dos velhos?” são linhas de uma extraordinária e dolorosa capacidade de síntese.
O texto de Mudar de Vida é, aliás, marcado por uma contenção lancinante, sintoma das paixões violentas e silenciadas num meio social retraído e duramente vigiado como o da pequena comunidade piscatória. Esse redemoinho interior é ampliado pela música de Carlos Paredes. E explode numa das sequências mais impressivas de Mudar de Vida: a noite de São João onde ouvimos o povo cantar e queixar-se da festa não ser como dantes (hoje, queimam-se caixotes de papelão em vez de madeira, diz-se). A sequência figura a dança em roda onde a comunidade se reconhece e o comércio das mulheres e dos amores se estabelece sob o olhar – e a concordância – de todos. É trágico, é comum, é um facto antropológico que Paulo Rocha reconhece como só outros poucos cineastas como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, António Reis e Margarida Cordeiro ou Pedro Costa observaram e compreenderam em toda a consequência entre nós. É a mesma dança em roda que se revisita em O Rio do Ouro, As Sereias, Vanitas e, mais recentemente, em Se eu fosse ladrão roubava onde regressamos à praia do Furadouro, com uma banda e um rancho de dançarinos numa fantasia pictórica onde a reencenação da memória culmina numa dança macabra interpretada por Isabel Ruth.
Por último, Geraldo D’el Rey, ator brasileiro decalcado de Alain Delon, surge em Mudar de Vida como uma figura de estranheza com um olhar que não é do lugar e que a guerra em África também não explica. Mas todo o cinema de Rocha nasce de uma vitalidade incongruente, da liberdade da associação plástica ou caprichosa e dos efeitos de colagem que estão na raiz da profunda simpatia do cineasta pela obra de Amadeo de Souza-Cardoso. Por todos os motivos, Mudar de Vida é o filme inicial que explica donde brota a pulsão telúrica, o desejo incandescente, a política e a poética da visão de Paulo Rocha – docemente infantil, perversa e trágica – e de toda a sua obra que finalmente começa a ser devolvida aos portugueses.
Texto de João Sousa Cardoso sobre o filme "Mudar de Vida", incluído no Ciclo Paulo Rocha.