Cidade veraneante, Locarno é um local de excelência para umas férias familiares. Localizada na Suíça, mas já muito perto da fronteira com a Itália, a cidade serve também como capital do cinema de autor, com o seu Festival – que comemorou, este ano, a sua 70.ª edição – na procura de acossar os três maiores festivais europeus (Cannes, Berlim e Veneza). A sombra tutelar do seu Leopardo, visto um pouco por todo o lado, dá conta desse objetivo, misturando o glamour da passadeira vermelha (foram homenageados, entre outros, nomes como Todd Haynes, Adrien Brody ou Nastassja Kinski), com as vanguardas do cinema do mundo.
Atrás da frenética vida de um festival, estão os filmes. Este ano, como nos anteriores, foi possível observar novas descobertas e confirmar que, de facto, Locarno é uma espécie de protetorado de uma certa cinefilia. A novidade sentiu-se, sobretudo, na apresentação de filmes que confundem as regras dos géneros maiores: documentários com aspetos ficcionais, ficções que são invadidas pelo documentário. Foram também evidentes filmes que procuram realidades extremas, fora da bolha do mundo ocidental. Por esses lados distantes, também se observam as consequências do mundo em que vivemos.
Foi, aliás, evidente a presença de filmes que dialogam com realidades muito contemporâneas. Por exemplo, Era Uma Vez Brasilía, de Adirley Queirós, é uma distopia passada entre Ceilândia e Brasília, misturando elementos de ficção científica (uma espécie de Mad Max brasileiro) com imagens documentais pós-impeachment. As imagens das diversas personagens alienígenas são sobrepostas a discursos de diferentes presidentes do Brasil. Adirley Queirós – autor do celebrado Branco Sai, Preto Fica – fez este filme numa espécie de urgência, mostrando as contradições políticas do Brasil e da sua história imediata, colocando-se no centro de poder do país. A proposta é arriscada, sobretudo também pela sua longa duração, mas a sua premência é inegável. Noutra dimensão, Ben Russell apresentou em Locarno um documentário bastante clássico – se olharmos para o seu anterior trabalho – com Good Luck. O título remete diretamente para o trabalho de que o filme se ocupa – a exploração mineira – e a sua aleatoriedade: os mineiros não sabem quando encontrarão a pedra valiosa que lhes permite ganhar a vida; não sabem também, e aí o filme é mais incisivo, quando sairão deste ciclo vicioso de um trabalho, na maior parte das vezes, inglório. Russell filma dois lados da “questão”: numa primeira parte, olhando uma escavação mineira na Sérvia; e, na segunda, para a procura ilegal de ouro no Suriname. As duas faces pertencem ao mesmo suor, embora as diferenças culturais sejam evidentes: a aparente boa disposição africana contrasta com as profundezas soturnas da Europa de Leste. A dimensão performática do filme é também procurada pelos planos-sequência, em que a steady-cam de Russell absorve a realidade. Caminhando para Oriente, encontramos uma das grandes surpresas do festival: Qing Ting zhi yan (Dragonfly Eyes), do artista chinês Xu Bing. A premissa é, de imediato, atraente: construir um filme a partir de footage de câmaras de vigilância. É, neste sentido, um filme de hoje, um produto da cultura panótica do mundo contemporâneo e do sempre online. Este puzzle de imagens suporta-se numa história de amor entre duas personagens, criando elementos melodramáticos e de tensão permanente. Mas o filme vai muito mais longe, interrogando o real, atirando para muitas hipóteses, todas elas particularmente violentas na sua dimensão humana. Imagens de acidentes naturais e humanos são abundantes, mas aqui não se olha pelo lado espetacular desse imaginário, antes de integra esse espetáculo nas formas de vida contemporâneas. Xu Bing mostra como não podemos escapar a elas, até porque estamos dentro delas. Essa evidência é esclarecida por um dispositivo formal interessante: a “invenção” de uma inteligência artificial que identifica aquilo que vemos: Dragonfly Eyes não é só um filme do presente; é um filme que projeta o futuro.
Em registos mais tradicionais, estão filmes de três cineastas com algum reconhecimento: Mrs. Fang, de Wang Bing; Ta Peau si lisse (A Skin So Soft), de Denis Coté; e The Death Nation, de Radu Jude. No caso de Bing, vencedor do prémio máximo do festival (Leopardo de Ouro do Concorso Internazionale), trata-se de um registo bastante delicado e próximo com uma família de uma aldeia chinesa. A Sra. Fang do título foi diagnosticada com Alzheimer e a família parece esperar a sua morte. O documentário observa este grupo, relativamente grande, de familiares, numa minúscula casa onde todos rodeiam a Sra. Fang. Para Bing, o que interessa é essa intimidade diária com o fim anunciado de uma vida. É modesto, mas tocante. O filme de Denis Coté procura observar um conjunto de bodybuilders. O filme é sereno, deixando a personalidades das suas personagens emergir da observação. A Skin So Soft entra num debate muito contemporâneo sobre a importância do corpo e do culto da imagem e fá-lo através de um híbrido que parece tanto um típico documentário observacional como uma ficção construída a partir de pessoas reais. O romeno Radu Jude, mais conhecido pelas suas ficções, apresenta aqui um documentário ensaístico mais convencional, revelando a história da Roménia durante o período nazi, a partir de um impressionante relato diarístico (de um médico judeu) e um conjunto de fotografias – uma espécie de retratos de família – que dialogam entre si, falando da história e da perseguição aos judeus.
Ainda no contexto desta aproximação ao real, ainda que com bastantes elementos ficcionais, estão dois dos objetos mais radicais vistos este ano em Locarno: Cocote, do dominicano Nelson Carlo De Los Santos Arias; e Meteorlar, do turco Gürcan Keltek. Em Cocote, qualquer definição formal é explodida: jogando com formatos de projeção diferentes, cor e preto-e-branco, o realizador provoca, propositadamente, as expectativas dos espectadores. A história contada é sobre Alberto, um jardineiro da burguesia da cidade, que é obrigado a regressar à sua terra depois da morte do seu pai. A estética rigorosa dos planos da casa burguesa contrasta com a violência cinemática da chegada de Alberto à sua cidade natal, onde tem que enfrentar uma semana de rituais fúnebres e uma família na vertigem da vingança. A energia do filme está na sua constante invenção dos planos, e na força das mulheres com quem Alberto terá que lidar. No centro do furacão, estão tanto rituais pagãos como religiosos e uma sociedade numa transformação tão profunda que nada mais parece ser autêntico. Um filme que reflete a pós-modernidade numa forma radical e poética. Por outro lado, Meteorlar é um ensaio multifacetado sobre o conflito armado entre curdos e turcos. Mas a abordagem é tudo menos explícita, antes se concentrando em blocos de imagens capturadas na noite, a preto-e-branco, mostrando diferentes fases do conflito, e envolvendo-as em memórias pessoais. O filme termina em apoteose com a queda de meteoritos, um fenómeno natural, cuja beleza e perigosidade se tornam fascinantes.
Dois outros filmes captaram a atenção pela forma como a sua construção ficcional se aproxima tanto de um retrato de geração como de uma documentação das vidas de jovens na cidade. São, ainda assim, totalmente divergentes do seu contexto cultural. Por um lado 3/4, do búlgaro Ilian Metev, é um delicado coming-of-age, acompanhando duas personagens: Mila, uma rapariga dotada para o piano, e Niki, o seu irmão mais pequeno. Num registo que se aproxima do novo realismo romeno, o filme joga num balanço da relação entre os dois filhos e o pai. No meio dos constrangimentos diários e comuns, os três tudo fazem para contrariar os seus medos e viver em paz entre si. Não é tarefa fácil e a câmara de Metev continuamente procura absorver as inconstâncias desta família. Finalmente, chegamos a Verão Danado, o filme de Pedro Cabeleira que recebeu uma menção especial na secção Cineasti del Presenti. Neste verão de todos os acontecimentos, Cabeleira mostra-nos uma geração que vive dos seus próprios fulgores. É uma espécie de celebração da vida, mesmo que muitos destas personagens pareçam estar na fronteira da sua condição física. Apesar disso, eles vivem e procuram testar todos os limites. O filme é honesto – mesmo nas suas limitações – mas à flor da pele, permitindo que seja vibrante, cheio de uma energia que contamina os espectadores. É um filme diferente, de uma nova geração de criativos, que juntos fazem aqui um primeiro fulgor da sua arte (Leonor Teles, por exemplo, é a diretora de fotografia do filme). Há aqui algo de novo a acontecer.
Locarno é um lugar de liberdade criativa e respira-se, nessa pequena cidade suíça, o futuro do cinema.