Quando o filme abre, um homem avança sobre a água do Guadiana: fato desportivo, movimentação aerodinâmica – ou aquadinâmica –, o rio fende-se à passagem de um moderno kayak e o homem segue, de costas e para longe da vila. O ideal do tempo de hoje ilustra-se contrário ao aglomerado de casas que, altaneiro, finca a imobilidade e o estatismo. Faça desporto, combata o sedentarismo: é o que parece dizer o anúncio com a imóvel Mértola por trás. Ora, apesar desta abertura, ou precisamente por causa dela e contra ela, Catarina Alves Costa realiza em Pedra e Cal uma elegia ao tempo em que ação e vida se associaram, de maneira íntima, à lentidão, ao correr manso dos dias. Ao tempo em que se associavam à mansidão que hoje, erradamente, se confunde com paragem e morte. No nosso largo, impaciente e infecioso presente, cinco minutos a olhar para o céu – ou para uma parede de cal e janelas desenhadas a ocre – correspondem à eternidade da morte, convocam o pavor de um fim de vida.
Assim se despovoaram de apressados corações as terras lentas, o chão de sempre, a cal repetida. Mas a realizadora sabe um segredo: os homens vão-se mais depressa do que as casas (“Nunca quero este friso desmanchado,” lembra alguém as palavras do pai já morto, apontando o persistente elemento na casa). A ordem do capitalismo que nos governa impõe o ritmo de gerações ávidas por riqueza – por bens facilmente contáveis, como não se conta uma dor, duas dores, três tristezas que se teve, quantas vidas; por acumuláveis entidades que, de tão persistentemente geradas pela força humana, se tornaram, dos seus criadores, donos implacáveis. Mas, de cal e pedra, por um incógnito enquanto, resistem os lugares. O que era, por exemplo, noutro tempo, um relógio, senão o marcar do almoço ou de reuniões das almas? O que é, hoje, o almoço?
Os dias vazios nas casas quase esvaziadas são revisitados por Catarina Alves Costa, que, com este filme, ao mesmo tempo que testemunha o despovoamento que condena o interior do Alentejo, uma das regiões mais isoladas de Portugal, pretende deixar desses dias a geometria ordenada, a disposição impecável e a luz limpa de que cuidam aqueles que, daqui a pouco, vão desaparecer. São poucas (quase nenhumas), no documentário, as crianças – até um cão já vai para velho. Mas têm o tempo do lado deles. Quando um documentário distende o ritmo das imagens, quando aceita o tempo daquilo que documenta, começa a cruzar a fronteira do olhar poético: é nesse limiar que se encontra, por culpa do objeto que olha, mas acima de tudo pelo olhar com que olha, pela discreta voz que interroga, o filme de Catarina Alves Costa.
* de um verso de José António Almeida no poema “Planície” (A Mãe de Todas as Histórias, Averno, Lisboa, 2008, p. 85.)