Na edição de 2018 do Porto/Post/Doc, dedicamos um foco no cineasta argentino Matías Piñeiro, com a exibição de vários dos seus filmes. Nesta entrevista, discute-se a génese e as obsessões do cinema de Piñeiro, passando pelas suas actrizes e métodos.
P: Foi aluno de uma das escolas de cinema mais importantes (Buenos Aires). Como surgiu o seu interesse pelo cinema?
R: Interessei-me pelo cinema indo ao cinema. Com a minha mãe aos fins-de-semana no final dos anos 90, quando era ainda adolescente. Lembro-me de ver o Burnt By The Sundo Nikita Mikhalkov e de não ter compreendido nada. Esses sentimentos de desorientação, de confusão e de miséria tocaram-me de uma forma estranha: havia um mundo lá fora e o cinema podia ser um meio peculiar para o alcançar.
P: Qual é, para si, a importância destas múltiplas aproximações ao cinema: realizar, programar, ensinar?
R: Todos elas se tornaram um único gesto na minha vida, uma forma de viver ou, melhor, de sobreviver. Pago a renda com os meus trabalhos como professor, o que me permite fazer os filmes que faço, que são os que eu quero fazer. Programar é uma extensão da minha cinefilia. Trata-se de partilhar, dar um ecrã aos filmes, cultivar a experiência de ir ao cinema e de reflectir sobre ele.
P: Em quase todos os seus filmes há um interesse especial pelo o papel da mulher, nas suas vidas e relacionamentos. Qual o motivo deste fascínio?
R: É possível que haja muitas respostas a esta pergunta. Terá que ver com as actrizes que tive a oportunidade de conhecer e com quem tenho tido o prazer de trabalhar. Elas são extraordinárias. Dever-se-á ainda às fortes mulheres que criaram o meu irmão, os meus primos e a mim - a minha mãe María del Carmen, a minha tia Cruz e a minha avó Hortensia. Terá também que ver com o facto de que as mulheres e a relação delas com o poder e o amor atraem-me mais do que o patriarcado.
P: O elenco dos seus filmes é quase todo composto pelas mesmas actrizes. Pode explicar-nos a vossa relação e o motivo pelo qual gosta de trabalhar com elas? De certa forma, envelhece e vê o mundo com estas actrizes.
R: Elas são excelentes, portanto, por que motivo não quereria trabalhar com elas vez após vez? Para além disso, não sinto que tenhamos esgotado as nossas possibilidades criativas fazendo as coisas apenas uma vez. O compromisso torna-se mais forte. Se eu gosto da experiência de trabalhar com alguém, porquê parar? Pelo contrário, continuamos para que possamos aprofundar a nossa busca. Para além disso, constrói-se um laço mais forte. Não é assim tão fácil conectar-mo-nos com alguém. Portanto, uma vez que isso acontece, não o queres deixar escapar. Forma-se um código em comum, a partir do qual eu posso aprender e caminhar rumo a novos horizontes de uma forma mais eficaz. E, de novo, é uma honra poder trabalhar com elas vez após vez, e aprender com cada uma delas. Eu gosto de as ver e de viver com elas filmes após filme. Fazer um filme é uma boa desculpa para nos encontrarmos, especialmente agora que não vivo em Buenos Aires.
P: Desde Rosalindaque tens vindo a adaptar livremente peças de Shakespeare e as suas heroínas. Porque é que o dramaturgo inglês é ainda tão importante nos tempos contemporâneos?
R: Há um desafio em escolher trabalhar com este material, Shakespeare, teatro, as comédias… Cheguei até elas através da leitura. Não estudei teatro. Eu li as peças e fui surpreendido com as comédias e com as suas heroínas. Relacionaram-se com as actrizes com quem trabalho. Gosto desta ligação e do desafio de ter estas actrizes a lutar, a brincar, a duplicar estes textos em frente à câmara. As actrizes também gostam, creio eu. Assim, talvez a câmara e os microfones sejam capazes de captar alguma desta alegria. Por outro lado, dá-me diálogos e acções a partir dos quais posso começar a tricotar os meus próprios filmes. É um material estimulante. Também aprecio traduzi-los, trazendo outros sons a partir da tradução não para um espanhol de Espanha, mas para um espanhol do Río de la Plata. Concluí ainda que as comédias eram tão ofuscadas pelas tragédias, que são sobre homens e poder. Interessou-me focar-me nas mulheres, no amor e na inteligência.
P: A certa altura falou sobre “o texto como uma presença física”, como algo que pode ser filmado. Qual é o papel do texto e, bem assim, da palavra, nos seus filmes?
R: Os textos e as suas palavras são materiais com os quais o cinema pode fazer algo. Penso que os podemos tornar numa presença física através dos actores, mas ainda como som e imagens. No Hermia & Helena, usei os textos de uma forma literal: fiz as palavras aparecerem no ecrã como parte da imagem. Os textos tornam-se também som. Penso que o cinema pode ser explorado dessa forma. Em Viola, o texto torna-se numa armadilha onde um personagem encurrala um outro num loopde ensaio. À primeira vista as palavras podem não ter muito que ver com o cinema, mas se pensarmos bem podemos encontrar aqui novas possibilidades de cinema. É ao colocar-me estas questões, sobre o que posso fazer com as palavras, que a mise-en-scènee as cenas dos filmes ganham forma.
P: A base das suas histórias são as relações humanas e, em quase todas elas, as relações amorosas. No seu mundo fílmico, o amor é uma passagem, transferido de pessoa para pessoa. Concorda?
R: Penso que regresso à ideia de amor e da sua dinâmica e natureza fugitiva como forma de me relembrar que eu não consigo controlar: as coisas podem ser diferentes daquilo que eu penso e de como quero que sejam, que o mundo é maior e mais vasto. Pode ter que ver com a minha forma pessoal de lidar com a desilusão. Pode haver também uma obsessão da minha parte, mas é, em suma, uma lembrança de que o movimento e a mudança são a nossa natureza. Posso dizer que estou interessado no conceito das intermitências do coração.
P: O processo de viver neste mundo também é manifestado na sua estrutura narrativa: elipses violentas, flashbacks, protagonistas diferentes e falsos futuros. Os seus filmes situam-se sempre entre a realidade e realidades alternativas. Concorda?
R: Concordo. Vejo o cinema como um espelho distorcido da realidade, uma duplicação transformativa. O cinema não precisa de apenas tentar copiar a realidade, mas adiciona opções àquilo que pensamos como sendo real. Neste sentido, proponhamos alternativas, ampliemos as possibilidades. Por vezes, já me referi aos meus filmes como ficções alternativas, também tendo em conta a forma como os filmes contam as suas histórias, tentando constantemente encontrar caminhos alternativos para mostrar aquilo que precisam mostrar.
P: A ideia de repetição e ensaio que encontramos nos seus filmes, e também entre eles – de Rosalindaa Viola, ao exercício entre In the Museume La Princesa de Francia–, tem que ver com uma procura de algo muito real dentro da ficção?
R: Na repetição subvertemos a realidade ou produzimos uma mais complexa. Porque as coisas não são apenas de uma forma, mas múltiplas e subjectivas. Produzimos duplicados. Quebramos a forma unívoca de compreender as experiências. Encontro aqui, ao explorar a repetição, o poder e a alegria do artifício no cinema. E nesse artifício posso expor algo que experienciamos como real. Sobre os filmes, gosto que, a dada altura, em vez de vermos a personagem Rosalind em Rosalinda, vejamos também a actriz – María Villar – a interpretar Rosalind. Vejo interesse em que se perceba a máscara e o trabalho envolvidos em torno do filme.
P: A cidade como um lugar para explorar a actividade humana é muito importante. Começa quase todos os seus filmes com establishingshotse planos picados da cidade. Porque é isto tão importante para si? Amise-en-scéneé uma chave fundamental para compreender a sua perspectiva cinemática?
R: Não me tinha apercebido da repetição dos planos picados. O espaço é crucial para a forma como quero mostrar as coisas. Ajuda a determinar o plano e as personagens. Percebo que não se tenha uma clara e sociológica apreciação do espaço nos meus filmes, que tendem para close-upse planos médios com lentes de 50mm e 85mm, mas ainda assim o espaço determina o plano. Há uma apreciação mais interna deste mesmo factor. O espaço esculpe a forma como os planos se comportam a partir de dentro. Há apenas um lugar onde pôr a câmara. Os ângulos e as perspectivas produzem a coreografia que se exibe no plano. Gosto de geometria e sinto que a câmara estabelece com o espaço uma tensão geométrica que os corpos dos actores exploram e estendem. Compreendo a mise-en-scénecomo o poder de criar uma forma que significa algo, talvez um pouco opaco, ou barulhento, ou emocional no tempo e no espaço.
P: Para além dos seus filmes a serem exibidos no Porto/Post/Doc 2018, seleccionou ainda um outro filme para a edição deste ano. Pode explicar-nos as razões que levaram a esta escolha, sobre a relação entre esta obra e a sua própria abordagem ao cinema?
R: Gosto de dar um ecrã a filmes que eu gostei e que quero partilhar. Especialmente filmes que não tenham sido tão mostrados quanto eu penso que merecem. Vi o Il Monte Delle Formicheno Festival de Cinema de Locarno há dois anos atrás. Estava no júri na altura e não pude dar-lhe o prémio que creio que merecia. É um filme curto, mas poderoso. Não é exibicionista quanto ao seu poder, apenas o mostra. E é generoso ao fazê-lo. Faz algo que a maioria dos filmes contemporâneos não fazem: preenche com aquilo que promete a si próprio mostrar. É um cinema de evidência. Há um nível de satisfação nessa representação, nesse simples mas único gesto que eu admiro profundamente. É um filme sobre formigas num mundo de elefantes cinemáticos. É ainda um filme sobre textos, e sobre como mostrar textos em filmes. Para além disso, é um diálogo com a natureza, uma boa tensão entre controlo e acaso, como numensaio.