Sinopse Enquanto os jovens capitães fazem a revolução nas ruas, o povo das Fontainhas procura o seu Ventura que se perdeu no bosque. Folha de Sala Foi o regresso da rodagem em Cabo Verde de Casa de lava (1994) que Pedro Costa tomou contacto com o bairro das Fontainhas. Trazia de lá, da Ilha de Fogo, correspondência para os emigrantes que moravam em Lisboa; a distribuição das cartas supôs o descobrimento desse lugar e da sua gente e disso acabou nascendo um novo filme, Ossos (1997), que foi uma revelação, um final e um princípio, ao mesmo tempo. O grande artifício já não servia: as câmaras de 35mm, o equipamento de luz e som e o barulho que implica uma produção típica, por pequena que seja, entravam em contradição estética e ética com objeto registado. No filme seguinte seria preciso ensaiar um método diferente. Seria preciso intimidade, dedicação, convivência diária; seria preciso tempo e trabalho, rigoroso e sistemático. Paradoxalmente, a rutura com o procedimento convencional e a redução da equipa ao mínimo devolvia um certo classicismo, o regresso à noção do cinema como oficio e à rotina de uma jornada laboral por cumprir, uma visão no fundo não muito afastada do velho sistema de estúdios do Hollywood dos anos 30 e 40. Isso foi No quarto da Vanda (2000). Fazer horas, olhar, escutar, aprender. O seguinte passo foi construir a verdade como ficção. Juventude em marcha, uma revolução, deu-nos a conhecer a Ventura, um dos muitos cabo-verdianos das Fontainhas recolocados nas vivendas brancas, sem personalidade, de Casal da Boba. Entre esses dois lugares, em diálogo com personagens do passado e do presente, discorria um filme de beleza extrema, fantasmal, uma desmonstração de humanismo e dignidade. A aposta radicaliza-se agora no formosíssimo enigma que é Cavalo Dinheiro, relato sonhado ou delírio de um Ventura mais velho e doente cuja memória fica ligada ao 25 de Abril. O reverso desse dia de esperança e liberdade é um 25 de Abril de medo e incerteza para os imigrantes que vieram das colónias, trabalhadores apavorados pela possibilidade de serem presos ou expulsos, inquietos por um futuro convulso. Passaram já quarenta anos mas mantém-se uma memória muito viva: não há ontem e hoje, é tudo o mesmo na cabeça de Ventura. Também com ele, está Vitalina, que só chegou a Lisboa depois da morte do marido, já demasiado tarde. Cavalo Dinheiro é um coro de espectros e zombies carregados de sofrimento e dor, de sacrifícios e derrotas. Homens e mulheres com as cicatrizes das ilusões perdidas a caminharem entre ruínas e sombras, sempre à margem da História, invisíveis. Uma fantasia expressionista que engrandece as possibilidades da imagem digital, arte povera que Costa sublima a força da depuração absoluta, de “obscurecer a obscuridade”, de colocar tirando. A força do tempo e do trabalho, digamos uma vez mais. O resultado é um exorcismo coletivo, uma experiência sensorial que nos abala e transforma, uma obra maior que inspira, sobretudo, palavras de agradecimento. Palavras que é justo repetir sempre que houver ocasião: Obrigado, Pedro. Obrigado, Ventura. Obrigado, Vitalina. Martin Pawley (crítico de cinema)