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Fantasmas (sobre Paula Rego, Histórias & Segredos)

por Daniel Ribas / 06 04 2017


Sabemos há algum tempo que Paula Rego é uma das maiores artistas portuguesas. A sua projeção internacional e a qualidade da sua obra são reconhecidas tanto no âmbito especializado da crítica de arte como num plano mais institucional. Por isso mesmo, um filme que procura olhar a intimidade da pintora tem todos os ingredientes para interessar quem pensa e pratica o processo criativo. Em Paula Rego, Histórias & Segredos, essa intimidade é tão mais entusiasmante quanto ela é potenciada pelo olhar do filho da pintora, Nick Willing, que nos revela ter ficado surpreendido pela disponibilidade da sua mãe, quando lhe falou deste filme. Entramos, assim, na porta privada de uma vida de criação. É uma porta imprevisível, cheia de terrores e prazeres.

O documentário, produzido para a BBC, adota uma estratégia pedagógica, olhando para a vida de Paula Rego a partir de uma linha narrativa cronológica, desde os anos de aprendizagem na Slade School of Fine Art, em Londres, até ao momento atual. Serve-se de muitas entrevistas, tanto atuais como históricas, dando voz às incertezas criativas de Paula Rego. Por isso mesmo, o filme é um documento preciso sobre a ascensão artística, mas também as minudências da vida da pintora e que serviram como caixa de ressonância da própria atividade criativa. Em especial, pontuam no filme a presença do marido, Victor Willing, de duas filhas e do próprio Nick, e também dos locais – Londres e Estoril – que afetaram a sua vida. A verdade é que as desventuras passionais – a relação com Victor, primeiro como amante e depois como companheira, a sua doença, a presença dos filhos – é decisiva para a carreira de Paula Rego. Um dos assuntos dominantes é o do aborto – que originou uma das mais importantes séries da autora – que tanto se relaciona com a política do seu tempo (a eminência de um referendo em Portugal sobre o assunto), como com a história de vida de Rego, na Londres da década de 50, da liberdade sexual e da ausência de métodos contracetivos que obrigaram a pintora a fazer vários abortos.

A candura da voz de Paula Rego contracena com as suas posições vanguardistas. Por vezes, parece que a artista é ingénua, mas a força do seu trabalho e das suas convicções políticas forçam-nos a perceber as contradições da criatividade. Há um momento singular neste documentário, quando Nick conversa com a sua mãe sobre as suas crónicas depressões. A evidência de um trajeto duro e complexo – até do ponto de vista financeiro – só ajuda a compreender a vitalidade desta obra. As gavetas abrem-se e vemos, com os nossos olhos, as obras escondidas que revelam essa depressão. Rego não as queria mostrar, tinha “vergonha”. Paula Rego, Histórias & Segredos é um filme revelador, aberto, que nos oferece um olhar transparente sobre uma das mais importantes referências da cultura portuguesa contemporânea.

(Paula Rego, Histórias & Segredos é exibido entre 6 e 12 de abril de 2017, no Passos Manuel).


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